Nota de editor:
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Rita
Farinha (Nov. 2009)
O CULTO DA ARTE
EM
PORTUGAL
RAMALHO ORTIGÃO
O CULTO DA ARTE
EM
PORTUGAL
Monumentos
architectonicos―Restaurações―Desacatos
Pintura e esculptura―Artes industriaes
O genio e o trabalho do povo―Indifferença
oficial―Decadencia
Anarchia esthetica
Desnacionalisação da
arte―Dissolução dos sentimentos
Urgencia de uma reforma
LISBOA
Antonio Maria Pereira,
Livreiro-Editor
50―Rua Augusta―52
1896
Typographia da Academia
Real das Sciencias de Lisboa
Á
Commissão
dos Monumentos Nacionaes
dedica respeitosamente
este humilde trabalho
O AUCTOR
[1]
Durante a Renascença, e ainda atravez da Edade
Média, tão insufficientemente conhecida no enigma
da sua cultura artistica, os reis, os monges,
os fidalgos, os burguezes enriquecidos ostentavam
o fausto e a pompa hierarchica não sómente
construindo
palacios e castellos, que enobreciam os
logares que elles habitavam, mas erigindo basilicas
e cathedraes, em que se concentravam todos
os esforços do talento de uma raça, e eram
verdadeiramente
os palacios do povo, doados magnanimamente
pelos mais poderosos aos mais humildes,
em nome de Deus, em nome do rei, em
honra da patria.
[2]
N'esses edificios incomparaveis se achavam colligidas
como em escolas monumentaes, como em
museus portentosos, todas as maravilhas da sciencia,
da poesia e da arte. A esculptura architectural,
a estatuaria dos mausoleus, a imaginaria dos
altares, a illuminura dos missaes, a pintura das
vidraçarias,
a talha dos retabulos subordinavam-se
a um pensamento commum, expresso n'um vasto
symbolismo, comprehendendo as fecundidades da
terra e do mar, o trabalho do homem nos seus
desfallecimentos e nos seus triumphos, a
perturbação
dos sentidos pelo peccado, a fatalidade do
sangue, o horror do universal aniquilamento, e
o vôo da alma para Deus, levada por um immortal
instincto de amor, de paz, de verdade e
de justiça.
Dentro d'essas egrejas, ameaçadas hoje de proxima
ruina ou inteiramente arruinadas, se celebravam
todos os actos da vida religiosa, da vida civil
e da vida domestica. Ahi se casavam os noivos,
se baptisavam os filhos, se sepultavam os paes.
Ahi se ungiam os reis, velavam as armas os cavalleiros,
professavam os monges, benziam-se os
[3]
fructos da terra, as bandeiras das hostes, as ferramentas
da lavoura e os pendões dos officios.
Ahi se discutiam os interesses do povo, os direitos,
as franquias, os foros da communa. Ahi se
prégava o Evangelho, se resava a missa, e se representavam
os autos populares da vida de Jesus
e dos seus santos; e nas vigilias da Natividade,
da Epiphania e da Paschoa, quando o orgão emudecia
no coro e se calavam os cantos liturgicos, o
povo bailava ao longo da nave, sob as abobadas
gothicas ou sob as cupulas bysantinas, e as lôas e
os villancicos, entoados pelos fieis, subiam para
o ceu com a fragancia das flores e com o fumo
dos thuribulos, ao repique das castanholas e ao
rufar dos adufes.
Ao lado dos brazões e das divisas heraldicas
pendiam dos muros os votos modestos dos mais
obscuros mesteiraes, dos mais humildes braceiros.
Esse alcaçar dos pobres, que era a egreja medieval,
alcaçar mais sumptuoso que o de nenhum
rei, dava asylo incondicional, inviolavel e sagrado,
aos maltrapilhos, aos villões, aos mendigos,
aos lazaros e ás lazaras de todas as lepras do corpo
[4]
e da alma, aos tinhosos, aos nus, aos imbecis, aos
ignorantes, aos criminosos, ás mulheres adulteras,
ás mancebas, ás mundanarias, ás
barregãs.
O egoismo dos tempos modernos torna-nos incompativeis
com o commetimento de tão grandes
obras. Creamos instituições de caridade, fazemos
regulamentos de assistencia publica, e vangloriamo-nos
de haver definido pela revolução liberal o
dogma da fraternidade humana, mas somos fundamentalmente
incapazes de consagrar á pratica
das virtudes, de que julgamos ter na historia o
monopolio, monumentos como aquelles que nossos
avós lhe levantaram
a proll do comum e
aproveitança
da terra, dando em resultado que o mais
andrajoso mendigo da portaria do mosteiro de Alcobaça
ou do mosteiro de Santa Cruz, com o seu
alforge ao pescoço e a sua escudella debaixo do
braço, participava, além da
ração quotidiana que
se lhe distribuia pelo caldeirão da communidade,
de um agasalho de principe e de um luxo d'arte
com que hoje não competem os maiores potentados,
os quaes em suas casas e para seu recreio intimo
se rodeiam de todas as joias artisticas de que
[5]
pela abolição dos vinculos e pela
extinção das ordens
religiosas se apoderou o moderno commercio
do bric-à-brac.
Falta-nos a alta noção de solidariedade
patriotica,
falta-nos o desapego dos bens de fortuna, falta-nos
o largo espirito de abnegação, falta-nos a
illimitada liberalidade cavalleirosa, e falta-nos a fé
dos nossos avós.
Na architectura trabalhamos unicamente para
nós mesmos, sem cuidados de futuro, sem pensamento
de continuidade de raça ou de familia, deslembrados
de que teremos vindouros e de que teremos
netos.
Entre as nossas antigas construcções hydraulicas
ha o aqueducto de Elvas, que levou cem annos
a fazer. Varias gerações successivas acarretaram
para essa construcção os materiaes; e lentamente,
pacientemente, foram collocando pedra sobre
pedra, para que um dia a agua chegasse a Elvas,
e bebessem d'ella os netos dos netos d'aquelles
que de tão longe principiaram a recolhel-a e a
canalisal-a. Uma tal empresa é a
humilhação e a
vergonha do nosso tempo, imcapaz de pagar com
[6]
egual carinho ao futuro aquillo que deve á previdencia,
aos sacrificios e aos desvelos do passado.
O nosso ideal na arte de construir é que a obra
se faça em pouco tempo e por pouco dinheiro.
Vamos abandonando cada vez mais, de dia para
dia, a pedra e a madeira, em que é nimiamente
moroso para a morbida inquietação do nosso
espirito
o trabalho de desbaste, de esquadria e de
lavor. Adoptamos, como material typico do nosso
systema de edificar, o ferro, o tijolo e a pasta. A
casa cessou de ser uma obra de architectura para
se converter em uma empreitada de engenharia,
e os delicados artistas da pedra, da madeira e do
ferro forjado abdicam da sua antiga missão perante
os subalternos obreiros encarregados de fundir,
de amassar e de enformar a vapôr a
habitação
moderna e o moderno edificio publico―a
gare, o quartel, o mercado ou a cadeia.
O seculo XIX, se com a impotencia de continuar
a obra monumental dos seculos que o precederam,
accumulasse a incapacidade de comprehender
e de venerar essa obra, representaria um pavoroso
retrocesso na historia. Não succede assim,
[7]
porque são inviolaveis as leis do progresso. Ao
seculo XIX coube patentear o estudo mais dedicado
e o conhecimento mais perfeito da arte antiga.
A sciencia archeologica e a critica d'arte
nunca em nenhum outro periodo da civilisação
chegaram á eminencia attingida pelos investigadores
contemporaneos. É tambem em sua maneira
um colossal monumento, dos mais gloriosos
para a intelligencia, o que erigiu a erudição
do nosso tempo, constituindo scientificamente a
archeologia, definindo o seu methodo, fixando os
seus limites, especialisando o trabalho dos seus
contribuintes, distinguindo da archeologia litteraria
a archeologia da arte, ramificando para um
lado a paleographia, a epigraphia, a ecdotica, a
museographia e a propedeutica, para o outro as
bellas artes, as artes industriaes, a numismatica, e
ainda como desdobramento d'estes estudos a iconographia,
a mithologia figurada e a symbologia,
particularisando emfim estas investigações a cada
povo e a cada epocha da humanidade, creando
d'esse modo a prehistoria, a egyptologia, a syriologia,
que tão amplo clarão teem derramado sobre
[8]
os problemas da origem do homem, da distribuição
das raças, da formação das linguas.
Fixaram-se
pelas escavações de Troia, de Mycenes,
de Chypre, de Santorin e de Rhodes as origens
orientaes e pelasgicas da arte grega. Corrigiu-se
na historia da ceramica a confusão existente entre
os vasos pintados gregos e etruscos. Refez-se
completamente sobre novos elementos e por um
criterio novo a historia da olaria, a da toreutica,
a da glyptica, a da esculptura em barro, a dos
bronzes, a das joias, a da tapeçaria, a da illuminura.
Desvendou-se o conhecimento da tachigraphia
hieratica e dos alphabetos hieroglyphicos,
ideographicos e phoneticos, que precederam o alphabeto
grego e o latino. Creou-se a critica scientifica
dos textos. Colligiram-se e classificaram-se
as inscripções gregas e romanas dessiminadas pela
Europa, e definiu-se o methodo de as datar. Leram-se
os carcomidos graffitos de Pompeia, os
papyrus carbonisados de Herculanum, as cartas
lapidares da edade média e os palimpsestos de
Plauto, de Cicero, de Marco Aurelio, de Tito Livio,
de Euripedes e dos scribas carolingeanos.
[9]
Interpretaram-se os documentos de procedencia
egypcia, copta ou phenicia sepultados nos jazigos
das mumias. E os mysteriosos caracteres hieroglyphicos
e cuneiformes das inscripções egypcias,
caldéas, assyrias e persas foram simplesmente
trasladados a vulgar. Determinou-se a edade dos
manuscriptos pelo systema das abreviaturas e da
pontuação e pela evolução
da letra desde a oncial
da
Iliada no palimpsesto
greco-syriaco do Museu
Britannico até a minuscula italiana egual á dos
primeiros caracteres da imprensa. Inspeccionaram-se
e inquiriram-se as primitivas habitações
do homem, as suas primeiras fortificações, os
seus
mais antigos sepulcros,―a caverna, a cidade lacustre,
os castros e os dolmens. Na architectura
principiou-se a estudar por novos meios de critica
as causas dos seus progressos e da sua decadencia,
prendendo assim pelos mais estreitos vinculos ao
destino da arte o destino do homem. Por tal modo
se transfigurou completamente desde o seu alicerce
até o seu remate o vasto edificio da historia,
segundo a resumida formula dada por Champolion
Figeac: que todos os monumentos, ainda
[10]
os mais communs e os mais grosseiros, conteem
factos cujo conjuncto é como a estatistica moral
das sociedades extinctas.
D'esse novo criterio resultou a attenção especial
com que todos os povos cultos principiaram
a considerar a obra material do passado; e assim
nasceu, com uma nova palavra, a nova maneira
de
restaurar os edificios publicos.
Em mais de um documento da edade média se
encontram provas de que os antigos poderes não
abandonavam, tão completamente como hoje se
poderia suppor, ao accaso de qualquer iniciativa,
sem beneplacito do estado, as edificações
consagradas
ao publico. No
Codigo de las
partidas, lei
6.ª, titulo X, dizia Affonso o Sabio, n'aquella saborosa
lingua de que mais tarde se desdobrou o
portuguez e o castelhano: «Por bienaventurado
se debe tener todo home que pueda facer eglesia,
do se ha de consagrar tan noble cosa et tan sancta
como el cuerpo de Nuestro Señor Jesucristo,
et como quiere que todo home ó mujer la puede
facer a servicio de Dios, pero con mandamiento
del obispo, como es dicho en la ley segunda deste
[11]
titulo, con todo eso debe catar dos cosas el que la
ficiere, que la faga complida et apuesta; et esto
tambien en la labor como en los libros et en las
vestimientas...»
Affonso V escreve de Almada, em 1467, aos
juizes, vereadores, procuradores e homens bons
da cidade de Evora para que se permitta a Sueiro
Mendes levar duas pedras que estavam nos açougues,
e eram do antigo templo romano, para antipeitos
das janellas de uma casa, que a esse tempo
edificava. «E porque as ditas pedras aproveitam
pouco honde estam e em as ditas casas faram
muito, e ainda é nobresa as cidades haverem
em ellas bôas casas taes como as do dito Sueiro
Mendes, e seu fundamento he as faser para nós
em ellas havermos de pousar, Nós vos rogamos e
encomendamos que vos prasa lh'as quererdes dar,
e Rodrigo Esteves mestre das nossas obras em
essa cidade terá cuidado de as tirar donde estam,
etc.» Estas linhas são um traço
caracteristico
da policia do tempo. D'ellas se deduz que era
preciso no seculo XV requestar a intervenção
regia
para bulir em duas pedras de um velho monumento,
[12]
operação que hoje se realisa com menos
formalidades, e até, como é sabido, sem
formalidade
alguma. Era porém entendido como
doutrina corrente não desdizer da nobreza de
uma cidade que cantarias de stylo romano se
transpuzessem do edificio a que pertenciam para
edificio de stylo completamente diverso. Aquillo
que modernamente se entende pelo neologismo
restaurar é operação desconhecida dos
antigos. A
obra architectonica seguia sempre e invariavelmente
quer em novas edificações, quer em
reparação
de antigas, o systema e o stylo da epocha
em que era feita. Sem falarmos do Egypto, da
Grecia, de Roma, onde as reconstrucções se
emprehendiam,
sem o menor sentimento de respeito
pela tradição, em vista de celebrar uma gloria
coeva com os mesmos materiaes que haviam servido
á glorificação de feitos anteriores,
como no
arco de Constantino feito com as pedras do arco
de Trajano, vemos em toda a Europa, e mais particularmente
em Hispanha e em Portugal, edificios
em cujos stylos sobrepostos perfeitamente se
espelha o independentismo das influencias diversas
[12]
atravez das successivas phases da construcção
por differentes vezes interrompida. Uns nascem
genuinamente bysantinos e desenvolvem-se romanicos;
outros começam romanicos e concluem gothicos;
outros, gothicos de nascença, acabam no
clacissismo greco-romano do renascimento; e é
frequente nas nossas egrejas entrarmos por um
portal do seculo XVI para nos defrontarmos com
uma capella mór no stylo barroco de D. João V,
de D. José ou de D. Maria I. D'esses casos de
polyarchitectonismo
encontramos exemplos em Toledo,
em Burgos, nos Jeronymos, na Batalha.
A cathedral de Colonia é n'este ponto de vista,
um facto particularmente expressivo. A
construcção,
principiada no meado do seculo XIII, proseguida
muito lentamente, suspende-se no fim do
seculo XV por desanimo de a concluir segundo o
plano primitivo. No seculo XVII e no seculo XVIII, a
nave, abrigada por um tecto provisorio, é ornamentada
em stylo rococo. Sómente em 1842 se
encetaram os trabalhos de uma restauração
authenticamente
archeologica, segundo o plano original,
cabendo o projecto da conclusão a um architecto
[14]
que ao mais profundo estudo do stylo
ogival reunia o talento mais esclarecido e mais
perspicaz.
Na historia da cathedral de Milão circumstancias
analogas ás de Colonia veem ainda corroborar
a affirmação de que unicamente ao seculo XIX
cabe o privilegio de restaurar monumentos. A obra
de Milão iniciada no seculo XIV, é interrompida
por desavenças entre os architectos, uns
allemães,
outros italianos, outros francezes; é continuada
no seculo XVI em stylo da renascença; e tão
sómente
em 1805 a restauração do monumento no
seu stylo primitivo, segundo os programmas mais
tarde definidos, se achou determinada por Napoleão
I, o qual pela vastidão do seu genio, ainda
que pouco propicio aos humildes, muitas vezes se
adeantou do seu tempo, e em muitas campanhas
da intelligencia indicou de antemão o ponto da
victoria, assim como ao principiar a campanha de
Italia assignalava na carta do Piemonte o logar
de Marengo.
Foi Vitet, nomeado inspector geral dos monumentos
historicos em 1830, quem primeiro indicou
[15]
em França o programma das restaurações
architectonicas,
presentemente seguido em toda a
parte:―em Hispanha, onde depois da real ordem
de 4 de maio de 1850, se não emprehende
obra de especie alguma nos edificios monumentaes
sem prévia consulta da commissão dos monumentos
historicos e artisticos; em Inglaterra e
na Allemanha, que haviam precedido a França na
protecção da arte nacional; na Italia, emfim, na
Belgica, na Dinamarca, na Suecia, na Noruega,
na Grecia, na Turquia.
Violet-le-Duc, o erudito mestre a quem tanto
deve o ensino da archeologia e das artes, completou
o programma de Vitet, não sómente ampliando
os seus preceitos, mas dando da applicação
d'elles o mais notavel exemplo na restauração do
castello le Pierrefonds.
Conhecidos os livros de Violet-le-Duc, estudados
com tão paciente laboriosidade, escriptos com
tão lucido e penetrante engenho, e conhecida a
legislação
européa baseada n'esses estudos tão completos
e tão perfeitos, a questão puramente
administrativa
de dar aos monumentos nacionaes de
[16]
cada povo a protecção que se lhes deve, quando
menos por simples solidariedade intellectual na
civilisação do nosso tempo, é
questão perfeitamente
illucidada e rigorosamente definida.
Vejamos agora qual é em Portugal, perante as
responsabilidades da administração, o reflexo das
ideias, cuja historia procurei resumir, com o fim
de pôr o assumpto na perspectiva que a sua magnitude
pede.
Levaria muito tempo e seria excessivamente
triste ennumerar todos os attentados de que teem
sido e continuam a ser objecto, perante a mais
desastrosa indifferença dos poderes constituidos,
os monumentos architectonicos da nação, os quaes
assignalam e commemoram os mais grandes feitos
da nossa raça, sendo assim por duplo titulo,
já como documento historico, já como documento
artistico, quanto ha, sobre a terra em que nascemos
mais delicado e precioso para a honra, para
a dignidade, para a gloria da nossa patria.
Dos desacatos de lesa magestade nacional, a
que tenho a dôr e a vergonha de me referir, uns
[17]
teem caracter anonymo, outros affectam directamente
a cumplicidade official. Os primeiros são
uma consequencia de desdem; os segundos são
um resultado de incapacidade.
A auctoridade, incerta, vagamente definida, a
quem tem sido confiada a conservação e a guarda
da nossa architectura monumental, procede com
esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro,
por dois methodos differentes: umas vezes
deixa-o morrer; outras vezes, para que elle
mesmo não tome essa resolução
lamentavel, assassina-o.
Na primeira hypothese a calamidade
correlativa chama-se
abandonar. Na
segunda hypothese
a catastrophe correspondente chama-se
restaurar,―gallicismo technico,
recentemente introduzido
no vocabulario nacional, mas ainda não
definido vernaculamente na applicação pratica.
Para o argumento que tenho em vista produzir,
tomarei unicamente d'entre os differentes desastres
com que se deshonram e enxovalham os
nossos monumentos, o desastre denominado
restauração.
Serei laconico, sem deixar de ser sufficientemente
[18]
expressivo, porque os factos são de uma
eloquencia que esmaga toda a especie de replica
na materia de que se trata.
Aqui temos tres edificios restaurados ou em
restauro a expensas da nação, sob os auspicios
do estado: Os Jeronymos, a Madre de Deus e a
Batalha.
Nos Jeronymos a construcção desmoronou-se,
sem provocação alguma de agente extranho, por
mero desequilibrio de si mesma. Inutil todo o
commentario. A restauração, ainda antes de
terminada,
cahiu. Que prova mais lastimavelmente
completa, evidente e cabal, de que foi insufficientemente
estudado, logo nos seus primordiaes elementos,
o programma de tal restauração?! As
seguranças
de execução falham precisamente na
parte mais rudimentar do problema.
Attente-se em que não se trata ainda de uma
questão de archeologia, nem de uma questão de
arte; não se apresenta nenhuma d'essas subtis difficuldades
inherentes ao estudo das fórmas constructivas
ou ornamentaes, ao discernimento dos
diversos stylos, ao pleno conhecimento das antigas
[19]
escolas no tempo e na região a que o edificio
pertence. Resolve-se apenas realisar uma simples
tarefa de construcção, e esquece, incumbindo esse
trabalho de simples mestre de obras ao mais distincto
dos scenographos, que a primeira condição de
um architecto a quem se confia a restauração de
um monumento é que elle seja, antes de tudo,
acima de tudo, o mais habil, o mais experiente, o
mais perito de todos os constructores.
Na Madre de Deus, onde aliás o primitivo portal
da rainha D. Leonor foi discretamente reconstituido
na moderna fachada do edificio, temos o
infortunio de ir encontrar no consecutivo restauro
de uma fabrica do tempo de D. João III novos
capiteis de columnas, nos quaes em vez da
ornamentação
vegetal do nosso seculo XVI se vê
reinar nos entablamentos a figuração,
absolutamente
imprevista e inopinada, de uma locomotiva
de caminho de ferro, arrastando fumegante o respectivo
comboyo, tudo lavrado mui laboriosamente
em pedra, e demandando um tunel. Este
assombroso phenomeno de pathologia archeologica
estou convencido de que dispensa ainda mais
[20]
do que o caso dos Jeronymos a investigação da
autopsia.
Nas restaurações da Batalha, umas já
em realidade,
outras ainda em projecto, falta, primeiro
que tudo, o meditado programma de conjuncto
no ponto de vista archeologico, no ponto de vista
artistico e no ponto de vista technico, visando o
assumpto por todos os lados de que elle pode ser
encarado: qualidade do solo, influencias da atmosphera,
escolha de materiaes, condições de resistencia
e de equilibrio, systema geral de structura,
determinação do stylo, desde as suas grandes
linhas e dos seus motivos dominantes até os ultimos
desenvolvimentos d'essas linhas, até o extremo
desdobramento d'esses motivos, mão de
obra, direcção e apprendisagem em todas as
officinas
de que depende o restauro, etc.
Seria por um programma d'essa natureza que
a competencia do architecto restaurador deveria
principiar a affirmar-se. Perante essa prova, comprehendendo
o estudo do monumento, plantas, alçados,
photographias, desenhos de projectos, systemas
de stylisação, methodos de estudo e de trabalho,
[21]
regimentos de officinas, etc., poderiamos
nós, que não somos architectos, mas simples
criticos,
fiscaes da arte em nome do publico, decidir
se o restaurador da Batalha está ou não
está ao
nivel da sua missão. Sem prova d'essa ordem que
cotejemos com os requisitos a que teem de satisfazer,
nos paizes extrangeiros, os architectos a
quem se entrega a restauração de um monumento,
nós não podemos julgar senão de um
modo
muito imperfeito, tendo de entrar mais ou menos
no exame da execução, para o qual nos fallece a
competencia profissional.
Luiz da Silva Mousinho de Albuquerque é o
unico architecto portuguez de quem conhecemos,
com relação á historia do edificio e
ao plano da
restauração da Batalha, estudos especiaes,
consubstanciados
n'uma memoria publicada, depois da
morte do auctor, em 1867. A monographia a que
me refiro, além de mui interessantes
revelações
sobre os vandalismos perpetrados pelos ultimos
frades que habitaram o mosteiro e chegaram a
quebrar os preciosos vidramentos das janellas
para presentearem os visitantes com cabeças das
[22]
figuras de que elles se compunham, contém alguns
principios mui judiciosos e bem definidos,
sobre o modo como esse perito restaurador, que
a influencia do rei D. Fernando fizera nomear,
comprehendia a sua delicada missão. E excellente
o methodo por elle proposto para a conservação
das Capellas imperfeitas. Notam-se alguns excessivos
e infundados rigores de zelo, como na parte
em que ao restaurador repugna adoptar, para o
fim de pôr o monumento ao abrigo das intemperies,
processos de resguardo mais perfeitos que
os conhecidos ao tempo da construcção primitiva,
taes como, por exemplo, o emprego de cimentos
modernos na vedação de uma cobertura,
etc. A memoria programma de Mousinho de Albuquerque
é não obstante um trabalho de incontestavel
merecimento, que muito augmenta de
valor se levarmos em conta que esse illustre architecto
escrevia em 1840, quatro annos depois
d'aquelle em que o rei D. Fernando visitou o edificio,
chamando para elle pela primeira vez a
attenção dos poderes publicos.
Até Mousinho a architectura da Batalha foi na
[23]
litteratura portugueza um puro thema de rhetorica.
O romantismo tinha-nos trazido a moda do
gothico por via de Chateaubriand e de Victor
Hugo. Os romances, as xacaras, as baladas e os
solaus, com as suas castellãs, os seus paladinos,
os seus pagens, os seus menestreis e os seus respectivos
attributos―lanças, montantes, elmos,
guantes de ferro, falcões, adagas, béstas e
bandolins,
pediam um scenario de fortificação feudal,
fossos e pontes levadiças, revelins, caminhos
de ronda, ameias, torres de menagem, amplas
chaminés com trasfogueiros forjados, ogivas e
abobadas. As egrejas, para os effeitos de grandiosidade
no stylo, sempre que não eram ermidas
eram cathedraes. Os romanticos chamavam
cathedraes a todos os grandes templos, como o
da Batalha, o do Carmo e o dos Jeronymos. O
romance historico, tanto em voga durante a
geração
litteraria de Alexandre Herculano, tinha
exigencias decorativas analogas ás da poesia cavalheiresca.
Os estudos de critica e de archeologia
artistica, tendo por objecto os nossos monumentos
architectonicos, davam em resultado
[24]
geral uma especie de lenga-lenga de eruditos ciceroni.
A Batalha tem sido constantemente, desde a
primeira apparição da
Abobada no
Panorama, até
hoje, o
grande livro de marmore, o
immortal poema,
a
Divina Comedia portuguesa, a
triumphante
affirmação da nacionalidade independente,
definitiva,
fundada pela vontade do povo, pela espada
do mestre de Aviz, pela lança de D. Nuno Alvares
Pereira e pela penna de João das Regras.
Com effeito, nada mais bello, na historia nacional,
do que o feito d'armas de Aljubarrota e o monumento
de Nossa Senhora da Victoria, destinado
a commemorar esse feito, por voto de D. João I.
Mas d'ahi a poder-se dizer que o edificio da Batalha
é, como a epopéa dos
Luziadas, a imagem
technica das idéas e dos sentimentos da patria,
medeia―me parece―um largo abysmo.
Olhemos por um momento a historia d'esta
construcção.
Frei Luiz de Sousa diz que «El-rei chamara de
longes terras os mais celebres architectos que se
sabiam; convocara de todas as partes, officiaes de
[25]
cantaria déstros e sabios; convidara a uns com
honras, a outros com grossos partidos, e obrigara
a muitos com tudo junto.» Este testemunho é
precioso
e está acima de toda a suspeita, porque nos
vem de um frade de S. Domingos, que habitou
por muitos annos o convento da Batalha, e que,
como chronista da ordem, conheceu inteiramente
pelo archivo do convento quanto se sabia da historia
da sua fundação.
Frei Francisco de S. Luiz contesta, sem provas,
que fossem architectos celebres chamados de longes
terras, como diz Sousa, os iniciadores da
grande obra, e cita como auctor do risco Affonso
Domingues, porque d'elle se sabe que teve parte
na direcção das obras nos primeiros annos da
fundação,
e não consta de documento authentico que
qualquer outro architecto interviesse nos trabalhos
durante os dezeseis annos que medeiam entre
o seu começo e o anno da morte de Affonso
Domingues, em 1402.
Todos os que se seguiram a Frei Francisco de
S. Luiz, adoptaram esta opinião; de modo que se
tornou uma cousa tão corrente como se estivesse
[26]
demonstrada que foi Affonso Domingues quem
construiu a Batalha.
James Murphy, porém, no seu livro
Travels
in
Portugal, affirma, por
informações que lhe foram
dadas em Lisboa por empregados da Torre do
Tombo, que o encarregado da
construcção foi o
architecto inglez Stephan Stephenson, socio das
free and accepted masons, que tinham
a sua séde
principal em York. Stephenson teria vindo a Portugal
por intervenção da rainha D. Filippa, mulher
de D. João I, ingleza de nação, filha
do duque
João de Lencastre e neta de Eduardo III.
O conde de Rakzynski diz a este respeito, que
desde que examinou as gravuras do convento da
Batalha, na obra
in folio de Murphy,
se convenceu
de que a analogia existente entre a Batalha e
a cathedral de York não permitte a minima duvida
acerca da origem commum d'estes dois edificios.
«Que o plano da igreja da Batalha―diz
Rakzynski―seja obra de um portuguez ou de um
inglez, a verdade é que as duas igrejas nasceram
de inspirações artisticas analogas, homogeneas e
contemporaneas, e o estylo de ambos me parece
[27]
identico. Esta impressão tornou-se para mim ainda
mais forte, depois que visitei a Batalha.»
Temos, pois, sobre a origem estrangeira d'este
monumento tres votos importantes: o de Fr. Luiz
de Sousa, o de James Murphy e o do conde de
Rakzynski, aos quaes recentemente se juntou o
architecto Haupt.
Na Torre do Tombo não se encontra documento
algum relativo á construcção da
Batalha,
nem á vinda de Stephenson a Portugal. Em
1845, Alexandre Herculano e o Visconde de Juromenha,
auxiliados pelos officiaes da Torre, fizeram
as mais demoradas e escrupulosas pesquizas
para o fim de satisfazer a curiosidade de
Rakzynski, e nada appareceu.
É claro que esta ausencia de vestigios no real
archivo nada prova sobre o facto de ter estado ou
não em Portugal o architecto de York. Não consta
tão pouco, dos documentos existentes no archivo,
que tivesse estado em Portugal durante nove annos
o insigne esculptor italiano Andrea Contucci,
emulo de Miguel Angelo; e no emtanto este facto
acha-se fóra de toda a contestação.
[28]
O cardeal patriarcha Frei Francisco de S. Luiz,
queixando-se da negligencia e da superficialidade
com que Frei Luiz de Sousa falla dos primeiros
architectos da Batalha, e propondo-se demonstrar
que o auctor da obra foi Affonso Domingues, diz
que não vê razão para pôr em
duvida a habilidade
dos nossos compatriotas, suppondo que houvessemos
de reclamar a assistencia de estrangeiros em
uma epocha como a de D. João I, na qual, exceptuadas
as italianas,
nenhuma nação da
Europa se
achava mais adeantada que a nação portugueza,
tanto na arte da architectura, como em todas as
outras.
O patriotismo imprudentemente levado até ás
affirmações da natureza das de Frei Francisco de
S. Luiz, tem um inconveniente grave, que é o de
fazer sorrir os estrangeiros, da ingenua
applicação
dos nossos sentimentos civicos á historia da arte
européa.
Hoje, toda a gente sabe, porque esta ordem de
conhecimentos tem-se vulgarisado muito, que o
systema gothico ou systema ogival, a que primitivamente
se chamou
Opus francigenum, teve a
[29]
sua origem na ilha de França e na região
circumstante.
Foi n'esses logares que até o seculo XII se
construiram os primeiros edificios gothicos. O
novo stylo chega em França aos seus mais completos
desenvolvimentos no seculo XIII, e d'essa
epocha datam as cathedraes de Amiens, de Pariz,
de Reims e de Chartres.
Os allemães e os inglezes teem contestado á
França a prioridade do emprego do arco ogival
e dos desenvolvimentos architectonicos que d'elle
procedem. O que, porém, está acima de todo o
litigio,
é que o systema ogival, chamado stylo gothico,
ou gothico puro da igreja da Batalha, não
procede da invenção dos paizes meridionaes, de
céu azul, mas sim das regiões nevoentas de longos
e rudes invernos.
No norte da Europa, durante a edade média,
tratou-se de edificar a grande cathedral que désse
um abrigo espaçoso ás numerosas
congregações
de fieis e de cidadãos; como a pedra escasseava,
como a neve cahia em abundancia e permanecia
por longo tempo, procurou-se um modo de
construcção,
que, sem difficultar a circulação da gente
[30]
com grandes e repetidos corpos de cantaria no interior
do edificio, permittisse empregar materiaes
menos solidos e fazer tectos elevados e agudos,
que, não pesando excessivamente sobre os membros
destinados a sustental-os, deixassem facilmente
resvalar e escorrer a neve pelas superficies
exteriores, impedindo o mais completamente possivel
a infiltração da humidade no interior do
templo.
Foi d'estas causas, determinadas pela natureza
do clima e do solo, pelas condições sociaes, e
não
de um mero capricho inventivo, que resultou para
os architectos dos paizes septentrionaes o pensamento
de readoptar a abobada de aresta, que os
romanos, depois de a haverem empregado, puzeram
de parte, para o fim de dar logar na construcção
das basilicas christãs á enorme quantidade de
columnas legadas pelo paganismo.
Assim foi que nasceu, bem longe de Portugal e
inteiramente fóra das influencias cosmicas e das
influencias sociaes geradoras do caracter e da indole
da nossa raça, que nasceu o stylo architectonico
da egreja da Batalha.
[31]
A affirmativa de que nenhuma nação da Europa,
com excepção da Italia, se achava mais
adeantada do que Portugal do tempo de D. João I,
nas artes da architectura, sómente prova, da parte
do cardeal frei Francisco de S. Luiz, que este benemerito
academico e illustre litterato, ou não viajou
nunca em França e na Allemanha, ou não visitou
n'estes paizes os monumentos anteriores ao
fim do seculo XIV.
A egreja da Batalha, que data d'essa epocha, é
chronologicamente um dos ultimos edificios em
stylo gothico puro construidos na Europa, e, apesar
de toda a sua belleza, está, como obra d'arte e
como magnificencia monumental, bastante abaixo
de alguns outros edificios construidos cem ou duzentos
annos antes, como a cathedral de Strasburgo
(1015 a 1275), Reims (1215), Amiens (1222), Colonia
(1248) a Sainte-Chapelle em Pariz (1248), Notre-Dame
(1275), etc.
Bastaria que o auctor da interessante memoria
sobre a construcção do convento da Batalha,
encorporada
na collecção das memorias da Academia,
tivesse olhado em Pariz para as estatuas de
[32]
Sainte-Chapelle e para os baixos-relevos da egreja
de Notre-Dame; que tivesse observado um momento
as esculpturas de Chartres, de Reims e de
Amiens; para ter uma idéa do enorme abysmo que
no tempo de D. João I nos distanciava ainda dos
grandes mestres da architectura e da esculptura
franceza, que se chamaram Pierre de Montreuil,
Thomas e Regnaut de Carmont, Jean de Chelles,
Hugues Libergier e outros artistas leigos, sem contar
os muitos monges anonymos com que se illustrou
na historia da arte, a ordem de Cluny, no seculo
XII e no seculo XIII.
Na Allemanha, temos, precedendo a Batalha, a
cathedral de Colonia; na Inglaterra Canterbury,
Westminster, Salisbury, Lincoln e York; e em Hispanha,
Burgos e Toledo.
Anterior á Batalha não ha em Portugal monumento
algum que prenuncie, prepare e explique a
apparição d'este.
Nos primeiros tempos da monarchia, em quasi
todo o periodo affonsino, os artistas e os obreiros
eram em geral arabes ou mouros. O portuguez
era como os seus reis, soldado ou agricultor. Para
[33]
as especulações estheticas faltava-lhe a paz, a
tranquillidade,
a riqueza. Mal lhe chegava o tempo
para desbravar o sólo e para bater os inimigos,
que de todas as partes rodeavam a pequena sociedade
nascente, aventurosa e aguerrida.
A Batalha, com a delicada pureza das suas linhas,
já então consagradas na Europa, surge
repentinamente,
imprevistamente, esporadicamente,
na corrente da architectura portugueza, como a
flor desconhecida de uma planta exotica.
D'onde é que foi transplantado para terra portugueza
este producto de uma civilisação superior,
em que o desenvolvimento da vida municipal, iniciada
pelas fortes corporações operarias e mercantis,
impellira as communas a construirem as
luxuosas cathedraes, que eram ao mesmo tempo,
nas cidades novas, um asylo de religião e um fóco
de vida civil?
Não sei responder peremptoriamente a esse quesito.
O problema assim estreitado é, no fim de contas,
de pura curiosidade.
O architecto inglez Hope, na sua
Historia
da
[34]
Architectura, diz que o estylo
ogival não tem propriamente
nem uma patria nem uma nacionalidade.
Só poderia ter nascido no seio de alguma
ordem religiosa ou de uma corporação de pedreiros
livres, porque o clero e os pedreiros livres
eram as unicas corporações que na edade
média
possuiam os conhecimentos necessarios para o
plano e para a execução dos edificios sagrados,
quer para as communidades monasticas, quer para
a egreja latina em geral.
Hope acrescenta: como os conventos e sobretudo
as
lojas dos pedreiros livres se
compunham
de cidadãos de todos os paizes, que reconheciam
a supremacia da egreja romana, não seria possivel
determinar positivamente os inventores do
stylo ogival quando mesmo se houvesse descoberto
o logar preciso do seu berço.
Em toda a parte onde apparecem as primeiras
amostras d'esse stylo ellas não são a obra de
individuos
de um paiz determinado, mas sim de
uma congregação encerrando no seu gremio homens
de todas as nações.
Na
Real Encyclopedia de Leipzig
lê-se com referencia
[35]
ás associações maçonicas
que ellas se compunham
de homens de arte de todos os paizes formando
uma só corporação dirigida por um ou
por
varios chefes. «Protegidos por privilegios ou cartas
patentes emanadas das auctoridades ecclesiasticas
e seculares, emprehendiam as maiores construcções
em toda a Europa e são auctores d'esses
magnificos edificios chamados gothicos e que
antes se deveriam chamar
Altdoutsch.
Achamos o
stylo de todas as construcções d'essa
época fundamentalmente
identico. As associações alludidas
compunham-se de architectos e de obreiros italianos,
allemães, flamengos, francezes, inglezes, escocezes
e até gregos. Foi d'essa maneira que nasceram
os monumentos seguintes: o
mosteiro da
Batalha em Portugal, a cathedral de Strasburgo,
a de Colonia, a de Meissen, a de Milão, o convento
do Monte Casino, e todos os edificios notaveis
da Inglaterra.»
Esta hypothese―e chamo-lhe hypothese, porque
não conheço os documentos positivos em que
se baseia o escriptor allemão―condiz perfeitamente
com a lição de Frei Luiz de Sousa, e é
talvez
[36]
de todas a mais verosimil com relação aos
constructores da Batalha.
Que fosse, porém, uma associação de
artistas e
de operarios; que fosse Stephan Stephenson, como
indica Murphy, de quem devemos crer que não
inventou esse nome e o recebeu, como diz, dos
empregados do archivo da Torre do Tombo; que
fosse, como pretende Hope, mestre Ouet, Huguet
ou Huet, de nação inglez, que trabalhou nas obras
e cujo nome Frei Francisco de S. Luiz encontrou
como testemunha no contracto de aforamento, em
que se fala de Affonso Domingues; como quer
que seja, emfim, a hypothese que menos verosimilhança
offerece é a de ter sido o monumento
delineado e construido pelo mestre portuguez Affonso
Domingues, como em Portugal se tem geralmente
escripto.
O mais superficial exame aos edificios anteriores
á Batalha manifesta do modo mais evidente
que não tinhamos nem escola, nem
tradições, nem
tendencias de que procedesse um artista como o
que delineou e construiu a egreja da Batalha.
Vilhena Barbosa, nos
Monumentos de
Portugal,
[37]
repete ainda a versão relativa a Affonso Domingues
como constructor da Batalha, mas accrescenta:
«É muito para admirar, não devo
negal-o, que
houvesse n'aquella época em Portugal um artista
tão consumado como o que fez o risco do monumento,
achando-se a architectura entre nós, antes
da execução d'esta obra em um estado, que, se
não era de grande atrazo, tambem não se lhe
poderá
chamar de adiantamento; em um estado pelo
menos que nenhuma memoria ou documento nos
auctorisa para o considerarmos como escola d'onde
pudesse sahir um artista tão completo.»
A seguir, Vilhena Barbosa, procurando conciliar
o arrojo do seu reparo com a tradição geralmente
recebida, exclama um tanto contricto: «N'este caso
lançarei mão de uma conjectura, não
pela necessidade
de sahir do embaraço, mas porque me parece
acceitavel e muito plausivel. Vem a ser que
talvez Affonso Domingues tivesse sahido da sua
patria antes da acclamação do mestre d'Aviz, com
o intento de se instruir e aperfeiçoar na sua arte.
Bem sei que n'essa época não eram dados os
artistas,
pelo menos os nossos, a procurar taes meios
[38]
de estudo. Entretanto, tendo estado em Portugal,
no reinado de D. Fernando e com alguma demora,
dois principes inglezes, o duque de Cambridge, e
um seu irmão natural, filhos de D. Duarte III, rei
de Inglaterra, pode ser que Affonso Domingues,
levado pelo amor da arte ou por outro qualquer
respeito, se resolvesse a acompanhar algum d'elles
na sua volta para Inglaterra, paiz classico da
architectura gothica no genero da Batalha.»
Confessemos que é preciso ter vontade de attribuir
por força a Affonso Domingues uma obra que
este não podia fazer, para formular a conjectura
de que
talvez elle se tivesse
resolvido a ir a Inglaterra
com os filhos de Duarte III.
Ainda quando admittida a singular camaradagem
do duque de Cambridge e de seu irmão com
Affonso Domingues, camaradagem conjecturada
por Barbosa, e de que não ha o minimo vestigio
historico, não será talvez inutil reflectir que
depois
d'essa excursão a Inglaterra―paiz tão debilmente
classico na architectura gothica, no
tempo
de Duarte III, que não tinha um architecto indigena,
nem monumento gothico algum, que se possa
[39]
pôr em confronto com as obras magnificas do
continente―Affonso
Domingos voltaria de Inglaterra,
no tocante ao conhecimento da arte de edificar,
proximamente no mesmo estado em que para
lá tivesse ido, o que facilmente se demonstra, como
vamos vêr.
Sabe-se que desde o seculo X se organisaram
na Italia, iniciadas pela Lombardia, essas
associações
de artistas seculares, architectos, esculptores,
illuminadores, imaginarios, vidristas, entalhadores
e canteiros, empregados pela egreja nas vastas
obras da primeira renascença da Europa, subsequentes
aos terrores do millenio, que por muitos
annos paralysaram todas as faculdades artisticas
da humanidade estupefacta perante a prophecia
pavorosa do proximo aniquilamento universal.
Estas confrarias, creadas e protegidas pelo clero,
tomaram o nome geral de
franco-maçonaria
ou de
pedreiros livres, e
compunham-se de associados,
que, depois de haverem passado por todos
os minuciosos tramites de uma longa aprendizagem,
adquiriam geralmente o direito de exercer
a profissão na qualidade de mestres.
[40]
Com a rapida e maravilhosa prosperidade das
novas cidades da Italia Septentrional nasceram
egrejas sumptuosas e conventos magnificos, que
em poucos annos cobriram uma grande superficie
da Lombardia e dos Estados adjacentes.
Chegado o momento previsto em que as ordens
religiosas de Italia cessaram emfim de ter obras
em que empregar a associação, cada vez mais
numerosa
e mais habil, dos pedreiros livres, pensaram
estes em dilatar a sua actividade fora do solo
natal.
Este expatriamento não representava unicamente
uma expansão artistica mas tambem uma
forte propaganda e uma consideravel conquista
internacional da egreja latina.
Essa grande companhia edificadora de monumentos
religiosos, de cathedraes e de mosteiros,
mobilisada n'uma companhia de arte atravez do
Norte da Europa, constituia como que um solido
reforço esthetico, temporal, naturalista e humano
á sagrada legião espiritual vulgarisadora do
credo
latino pela ramificação das ordens religiosas
sobre
todas as latitudes da terra.
[41]
Cada egreja e cada convento edificados em paizes
estranhos e longinquos eram―diz Hope―um
novo feudo adquirido ao papa.
A egreja comprehendeu inteiramente o alcance
d'este grande facto, tão importante na historia da
arte romanica, da arte lombarda, da arte gothica
e de todas as artes liberaes na Europa, depois de
cahida a influencia da antiga civilisação
hellenico-romana.
Como incentivo e amparo da vasta odysséa, a
que se aventuravam os denominados pedreiros livres
receberam então da auctoridade pontificia,
emminente a todos os conflictos e discordias de
soberania para soberania e de nacionalidade para
nacionalidade, privilegios incomparaveis, destinados
a assegurar á confraria errante uma especie
de inviolavel monopolio esthetico e artistico, como
o que em nossos dias poderia resultar de um congresso
universal, tendo em vista pôr acima de qualquer
contingencia politica um interesse commum
a toda a especie humana.
Diplomas e bulas papaes confirmaram para todos
os paizes, que houvessem reconhecido a fé catholica
[42]
apostolica romana, todos os privilegios que
a confraria dos pedreiros livres havia recebido dos
Estados de que era oriunda.
Ella dependeria directamente e unicamente da
auctoridade pontificia, isenta de todas as leis e estatutos
locaes, dos editos dos reis ou dos regulamentos
dos municipios e de toda e qualquer imposição
obrigatoria para os naturaes do paiz em
que se encontrasse.
Só á associação caberia o
direito e o poder de
taxar os salarios, e de prover em capitulo, sem
appellação nem aggravo, a quanto dissesse
respeito
ao seu proprio governo. Era expressamente
prohibido a todo o artista não iniciado nem admittido
na associação estabelecer para com ella qualquer
especie de concorrencia, assim como era defeso,
sob pena de excomunhão, a todo o soberano
manter os seus subditos n'esse acto de rebeldia
ás prescripções da egreja.
Esta
Internacional carolingiana, bem
mais poderosa
do que a
Internacional napoleonica
sahida
dos primeiros movimentos socialistas do segundo
imperio, desenvolveu-se rapida e portentosamente.
[43]
Muitos gregos vindos de Constantinopla se reuniram
aos primeiros artistas confederados, vindo em
seguida allemães, francezes, belgas e inglezes.
Desdobraram-se successivamente as diversas lojas
ou series de agrupamentos, em que cada dez
associados obedeciam a um chefe em communicação
com os chefes das demais decurias e com a
direcção central.
Os ecclesiasticos da mais alta categoria, os
prelados, abbades mitrados e bispos, accrescentavam
a força e o prestigio da associação,
alistando-se
como membros da irmandade.
Todos os soberanos da christandade se gloriavam
em honrar com especiaes distincções e
particulares
privilegios as suas lojas nacionaes.
Para o fim de evitar que individuos estranhos
á associação aproveitassem
fraudulentamente os
enormes beneficios de que ella tinha o privilegio,
e bem assim para que, em qualquer região do
mundo, cada irmão pudesse communicar com os
seus consocios, fazendo conhecer a sua iniciação
e o seu grau na confraria, estabeleceram-se as senhas
secretas, os
signaes
maçonicos, por meio dos
[44]
quaes os consocios se reconheciam em qualquer
parte, e revestiu-se o acto de iniciação e
matricula
de formalidades solemnes, de provas especiaes,
de juramentos terriveis, por via dos quaes cada
novo confrade se obrigava não sómente a
não revelar
a quem quer que fosse os signaes, com que
mutuamente se entendiam os pedreiros, mas a esconder
dos estranhos todos os processos technicos
e todas as regras do officio, de que a associação
tinha a posse. Esta collaboração phenomenal
dos melhores obreiros, de todos os grandes artistas
e de todos os sabios do mundo, associados
da maneira mais engenhosamente completa e perfeita
para exercer a arte de edificar, elevou a architectura
religiosa n'este periodo á mais alta
perfeição
scientifica e technica, a que jámais chegou
a obra da intelligencia e da mão do homem.
Quando a longa e laboriosa gestação de todos
os demais ramos do saber humano se discriminava
apenas em rudimentos embrionarios, de uma
confusão tenebrosa, a architectura constituia o
mais perfeito corpo de leis estheticas e de leis
scientificas. Crearam-se as mais elevadas e as
[45]
mais caracteristicas fórmas de stylo, resolveram-se
os mais complicados e os mais difficeis problemas
de calculo, de geometria e de mechanica,
acharam-se, emfim, innumeraveis processos chimicos
e methodos technicos, que se perderam e
nunca mais se substituiram, porque com a grande
confraria dos maçons morreu a tradição
de que elles
tinham a guarda e o segredo.
No tempo de Eduardo III a maçonaria, que só
um seculo depois acabou na Inglaterra sob o reinado
de Henrique VI, mantinha-se em pleno vigor.
Ora, dado que só muito lentamente e por via
de provas espaçadas e progressivas podia o obreiro
no gremio da confraria subir á
qualificação de
mestre, e só como simples obreiro podia ser admittido
e iniciado, dado por outro lado que era
tal o segredo sobre os methodos de edificar que
toda a planta, todo o risco, todo o calculo, todo o
estudo graphico, era invariavelmente e escrupulosamente
destruido immediatamente depois de utilisado
em qualquer obra, parece-me não haver um
excessivo arrojo em conjecturar que Affonso Domingues
[46]
n'uma viagem a Inglaterra, no tempo de
Eduardo III, nada aprenderia de architectura, ficando
estranho á maçonaria, e, tendo-se iniciado
n'ella antes de vir construir a Batalha, seria então
da maçonaria e não d'elle o monumento de que
se trata.
Revertendo ao escrupuloso e esclarecido estudo
de Mousinho, notemos que elle não encontrou nem
quem o continuasse nem sequer quem se lhe submettesse
entre os restauradores que se lhe seguiram.
As capellas imperfeitas, incomparavel joia
da architectura portugueza mais caracteristicamente
regional, acham-se no mesmo abandono
em que ficaram em 1843, depois que elle as desinfestou
dos parasitas arbustivos e das herbaceas,
cujas radiculas se tinham por tal modo multiplicado
nos intersticios das cantarias que em muitos
pontos houve que desmontar as lageas para extirpar
as hervas e refazer os massames substituidos
pelo intimo estojo vegetal, que inchando por todas
as juntas da pedra, ameaçava desarticular e
destruir tudo por uma derrocada geral.
Sem exposição de plano referido ás
obras que
[47]
recentemente se tem feito, e cuja doutrina nos daria
uma base de estudo e de discussão, quem,
como eu, não tem voto na materia para a resolver
por sentença, precisaria de entrar em uma
longa serie de pacientes raciocinios e de humildes
demonstrações para pôr em evidencia
todos
os erros que em taes obras se teem comettido.
Para não tornar pelo emprego d'esse processo,
excessivamente longo este modesto estudo, tomarei
um ponto capital, sufficientemente expressivo
para dar a medida do criterio empregado na
restauração
da Batalha.
Pela entrada principal da egreja, á semelhança
do que succede em grande parte das egrejas gothicas,
desciam-se na Batalha alguns degraus,―sete
se me não engano―para chegar ao pavimento
da nave central. Um dos restauradores que
se succederam a Mousinho de Albuquerque, tendo-se
por assistido de razões plausiveis para modificar
o alludido systema, rebaixou o terreno exterior
ao nivel do pavimento da egreja, e supprimiu
os degraus, serrando as hombreiras e substituindo
as cantarias que lhe serviam de base. A porta principal
[48]
do monumento da Batalha ficou por esse
modo tendo de altura a dimensão de duas larguras
em vez de largura e meia approximadamente,
segundo a dimensão primitiva. O architecto havia
previamente submettido o seu projecto ao exame
das estações superiores, e o respectivo ministro
sanccionara a obra com a sua alta approvação.
Será difficil encontrar em um tão breve episodio
de construcção uma tão vasta
affirmativa de
desoladora ignorancia.
Poderá parecer excessiva e condemnavel ousadia
que um simples curioso se arrogue o direito
de qualificar de ignorante um architecto em exercicio
da sua profissão. O erro é todavia no caso
sujeito tão flagrante que não supporta defesa. Um
barbarismo architectonico está tanto ao alcance
de um escriptor como um barbarismo grammatical
está ao alcance de um architecto.
Toda a gente sabe que ha em architectura uma
inilludivel medida de proporção e de
relacionação
que se chama a
escala. Sem escala
não ha obra
de architectura nem ha construcção alguma
sensata,
por mais subalterna, por mais infima que ella
[49]
seja. Na architectura grega a unidade abstracta
d'essa medida é o modulo. Na architectura da
edade média a unidade é o homem. N'este simples
principio, tão magistralmente exposto por
Violet-le-Duc, se baseia o caracter essencial da
architectura medieval. D'essa referencia de toda a
construcção á pequenez da estatura
humana resulta
o singular effeito de grandiosidade que distingue
os monumentos gothicos dos monumentos
neo-classicos, Nossa Senhora de Pariz de S. Pedro
de Roma, ou a egreja da Batalha da egreja
de Mafra. Para esse effeito contribue o aspecto
das successivas fileiras da cantaria á altura das
paredes e das pilastras, porque a escala gothica,
determinada pela altura do homem, se subordina
correlativamente ás dimensões do material. Assim
pela serie das juntas, sempre em evidencia na
sobreposição
das cantarias, a vista calcula rapidamente,
por instincto arithmetico, a grandeza de
uma fabrica como a da Batalha, estabelecendo a
proporção entre as dimensões da pedra
e a estatura
do homem, e entre a altura do homem e a
elevação da nave.
[50]
Do que fica exposto resulta que a simples
substituição
de uma pedra por uma pedra de dimensão
differente na base de uma hombreira no portal
da Batalha é, em si mesma e isoladamente,
como troca de pedra por pedra, um grave erro,
porque essa base de hombreira, devendo ter tido
inicialmente a dimensão exacta e precisa, que á
esquadria da cantaria impõe a dimensão do bloco,
é um elemento fundamental da escala pela qual
se rege todo o edificio; e não pode como tal nem
supprimir-se nem alterar-se.
Mas temos de considerar ainda que com essa
mudança de pedra se offendeu o preceito da unidade,
alterando a fórma e a dimensão de um dos
mais importantes membros da construcção. O
conjuncto
de um monumento―diz Quatremère de
Quincy―é de tal modo combinado, que n'elle se
não pode nem tirar nem pôr nem alterar o que
quer que seja. E Violet-le-Dué desenvolve esse
preceito da maneira seguinte: «É um erro grosseiro
suppôr que um qualquer membro de architectura
da edade média pode ser impunemente accrescentado
ou diminuido. N'esta architectura não
[51]
ha membro algum, que não esteja na escala do
monumento para que foi composto. Alterar esta
escala é tornar esse membro disforme... Os erros
de escala que escandalisam em um monumento
novo e lhe tiram todo o valor, tornam-se monstruosos
quando se trata de uma restauração.» As
dimensões das portas―já dizia Vinhola―devem
ser de uma proporção relativa á escala
pela qual se
construir o edificio, á grandeza das suas differentes
peças e finalmente ás particularidades da obra
e do local em que esta fôr feita. Com
relação ás
portas nas ordens jonica, dorica, corinthia e toscana
as proporções entre a altura e a largura dos
portaes, acham-se geometricamente determinadas
pelos discipulos de Vitruvio. Na architectura gothica
a porta representa porém um papel mais preponderante
que em qualquer outro systema de
construcção. «De hora avante―proclama
Violet-le-Duc
referindo-se ao periodo medieval―a porta
deixará de augmentar em proporção com
o edificio,
porque, sendo feita para o homem, conservará
sempre a escala propria do seu destino.»
A medida de extensão na edade média era a
[52]
toeza, correspondente á estatura do homem alto.
A porta da egreja destinada a dar passagem ao
portador de uma lança de guerra ou de torneio,
de um baculo, de uma cruz ou de um pendão, tinha
a altura fixa e invariavel de duas toezas a
duas toezas e meia, segundo as regiões em que
se construia. O portal gothico tem ainda, como
titulo ao nosso respeito pela sua inviolabilidade,
a condição de representar na fachada do templo
como que um summario de toda a obra. É do
principio da arcada, de que a porta é o motivo
predominante, que se deduzem e desenvolvem
systematicamente todas as demais fórmas constructivas
e ornamentaes na architectura do edificio.
Archivoltas, nervuras, pilastras, columnelos, janellas,
nichos, misulas, baldaquinos, trifolios, que
são na egreja da Batalha senão
applicações e desdobramentos
successivos, engenhosamente variados,
das linhas constitutivas da porta principal do
templo?
Quão tragicamente profunda tem que ser a indisciplina
official em todos os serviços da arte
para que possa dar-se um attentado da ordem
[53]
d'aquelle a que me refiro:―para que um architecto
proponha, para que uma repartição publica
auctorise, para que um ministro da corôa sanccione―sem
protesto do districto, do municipio ou
da parochia―que se desfigure o primeiro dos
nossos monumentos da edade média, alterando as
fórmas de uma porta, que é a porta principal
d'essa
gloriosa egreja de Santa Maria de Victoria, que
os architectos do mestre de Aviz alçaram pela bitola
dos estandartes, dos balsões e das bandeiras
de Aljubarrota, e segundo a altura a que chegava
nas hombreiras o bico do bacinete ou a cimeira
do morrião dos da ala da madresilva ou da ala
dos namorados!
Se fosse meu proposito enumerar os erros commettidos
nas restaurações da Batalha teria de referir-me
ás vís deturpações por que
está passando
a capella do fundador; ao detestavel altar mór, em
cuja pedra tão miseramente se acha reproduzido
por uma especie de grafito o desenho de um
mosaico, e a odiosa coloração das
vidraças, em
que o doce tom de ambar, que os vidristas da
edade média obtinham por uma emulsão de mel
[54]
na preparação da tinta, se vê
substituido pelo
de um reles amarello cru, de refalsado topasio.
O inacreditavel tabernaculo com que houve o arrojo
de empachar o ambito de uma das naves,
sob pretexto de construir uma capella baptismal,
teria ainda que deter por algum tempo o meu
horrorisado espanto perante esse tão insolente
e tão irrespeitoso abuso do pseudo-gothico, em
proporção e em escala unicamente permittidas,
por longanimidade de ridiculo, em jazigos de familia
e em pratos montados, na latitudinaria architectura
dos cemiterios ou das confeitarias.
O meu fim porém não é fazer a critica
das restaurações
da Batalha, mas sim demonstrar, como
julgo ter feito, por meio de alguns factos caracteristicos
e capitaes, que nas restaurações emprehendidas
tanto n'esse como nos demais monumentos
architectonicos recentemente reparados
a expensas do estado, não houve antecedencia de
programma, nem estudo previo, nem determinação
de methodo, nem sancção critica, nem
fiscalisação
technica, nem policia artistica de especie
alguma.
[55]
Pelo numero e pelo quilate das mutilações,
deturpações
e superfetações, inteiramente arbitrarias
e escandalosas, de que são objecto os monumentos
restaurados com assentimento e com subsidio
official, como a Batalha, os Jeronymos e a Madre
de Deus, poderemos calcular o que se passa nos
edificios em que camaras, parochias e simples particulares
estão no logro de restaurar, de concertar
ou de demolir a seu gosto.
Em Ponte de Lima havia uma ponte, que dava
o nome á villa. Esta ponte, em parte romana, em
parte gothica, era revestida de ameias e entestada
por dois castellos ogivaes. A vereação, com o
motivo
de desafogar a vista sobre as duas margens
do rio, manda demolir os castellos e serrar as
ameias da alludida ponte.
Outra vereação, em Santarem, bota a baixo a
bella torre gothica de Santa Maria de Marvilla,
fundação dos primeiros tempos da monarchia,
para o fim unico de deixar o terreno sem coisa
alguma em cima, e ser por essa razão uma praça.
A Real Associação dos architectos civis
propõe-se
a esse tempo comprar os sinos da torre demolida,
[56]
em bronze esculpido. A junta de parochia prefere
derretel-os.
No castello de Leiria, que, tendo sido construido
como casa e museu pelo rei mais artista, mais
poeta e mais sabio do seu tempo, constitue um
documento, unico talvez na Europa, da archeologia
romana e da vida de côrte na edade média,
certos festeiros em noite de gala, derribam a columnata
do eirado principal para dar campo a um
effeito de luminarias e de pyrotechnica.
Na alcaçova de Santarem as ameias de D. Affonso
Henriques substituem-se por ignobeis grades
de ferro fundido e pintado de verde.
A porta da Atamarma, pela qual ainda passou
Garrett ao tempo das
Viagens na minha
terra, é
arrasada, juntamente com a capellinha de Nossa
Senhora da Victoria, que tinha por cima. No orçamento
d'essa demolição, que o governo approvou
no anno de 1865, a camara de Santarem, tripudia
de jubilo, affirmando que a dita desmontagem,
que por mais tempo se não podia
protrahir,
fôra vantajosamente arrematada pela quantia de
trinta e nove mil réis, calculando-se em mais de
[57]
cem mil o valôr da pedra e do tijolo que ella produziu.
Com esse cantico de alegria orçamental,
desappareceu o glorioso portico, por onde o fundador
da nacionalidade portugueza e os da sua
hoste entraram em Santarem com as espadas e as
lanças gottejantes de sangue mouro, firmando por
esse acto o fim do dominio sarraceno em Portugal.
A porta do
Bom Successo veio abaixo,
como a
de Atamarma, por disposição do respectivo
municipio.
A destruição das portas de muralha, bellos arcos
na maior parte ogivaes, com que tanto se
enobreciam algumas das nossas velhas cidades,
tem sido a grande preocupação vesanica das
municipalidades
modernas, absolutamente ignorantes,
ao que parece, das gloriosas tradições locaes
de que esses monumentos eram o testemunho authentico
e sagrado.
Dentro d'essa cathegoria de delinquentes será
difficil disputar o primeiro logar da serie pathologica
á cidade do Porto.
O Arco da Vendoma, á rua Chan, que havia
sido uma das portas da circumvalação sueva, sobre
[58]
a qual a rainha D. Tareja fizera collocar em
ediculo a imagem da Senhora da Vendoma, trazida
de França pelo bispo D. Nonego, é
desapiedadamente
demolida em nossos dias, depois de
oito seculos de existencia.
Os bellos arcos do Postigo de Santo Antonio
do Penedo e do Postigo do Sol veem egualmente
abaixo, em 1875, sem razões algumas que expliquem
mais esta demolição que a do Arco da Vendoma.
Junto do Postigo do Sol ficava no entanto,
e memorava-a o arco, a veneranda
Viella das
Tripas,
onde assistiam as fressureiras, que deram aos
do Porto o nome de tripeiros, vendendo-lhes os
miudos das rezes, cuja carne elles haviam espontaneamente
cedido á armada de D. João I para a
expedição de Ceuta.
Á Porta do Olival, da qual como do Postigo do
Sol só resta o nome, foi acclamado D. João I. A
essa porta foi esperada pelos portuenses, e por ella
entrou pela primeira vez na cidade, na occasião
das suas bodas com o mestre de Aviz, a rainha
Filippa de Lencastre.
O Arco da Senhora Sant'Anna, que deu o titulo
[59]
á linda narrativa portuense de Almeida Garrett, é
sacrificado como os demais ao alvião municipal
da cidade invicta.
O ultimo emfim dos arcos do Porto, ainda ha
bem poucos annos destruido, foi o da Porta Nobre,
por onde faziam a sua entrada solemne os
bispos e os reis, que os moradores da Reboleira
recebiam triumphalmente na sua rua, juncada de
espadanas e de funcho, entre festões de flores pendentes
das velhas janellas de resalto, á flamenga,
sob punhados de trigo, reluzente no ar em chuva
de ouro.
Em Santarem disseram-me ha dias, nos proprios
logares em que se está mancumunando o delicto,
que os vereadores projectam agora demolir a Torre
das Cabaças.
Quando a rainha D. Maria I visitou Santarem
em 1785, botaram-se as medidas do côche de sua
magestade a todo o caminho que elle tinha de percorrer,
e desfizeram-se diligentemente a picão, nas
ruas da villa, todas as protuberancias architectonicas
em que se anteviu algum risco de entalação
para o trajecto da real berlinda.
[60]
No Canto da Cruz cortaram-se, como quem
corta queijo, os vertices dos angulos nos edificios
de esquinas menos reverenciosas para com o regio
transito. Entre a Torre do Alporão e a Torre
das Cabaças o passo porém apresentou-se
especialmente
difficil. Applicou-se-lhe a bitola do regio
côche, que o secretario de estado visconde de
Villa Nova da Cerveira mandára previdentemente
de Salvaterra de Magos ao juiz de fóra, presidente
da camara municipal da villa, e consignou-se que,
por obra infernal de palmo ou palmo e meio de
saliencia, o magestatico vehiculo da soberana teria
de ficar engasgalhado pelos cubos das rodas
entre os dois monumentos. Então, depois de haverem
marrado por um momento no problema, e
uns nos outros, os vereadores scalabitanos removeram
a difficuldade, redobando a fita da medição
inutilmente esticada, mettendo os solicitos e suados
covados debaixo dos braços, e mandando simplesmente
arrasar a Torre do Alporão, monumento
do dominio romano, do alto do qual, durante a
occupação serracena, o arabe dictava ao povo a
lei de Mahomet.
[61]
A Torre das Cabaças é muito menos antiga e
menos documental que a do Alporão. Com quanto
Garrett a faça invocar anachronicamente no
Alfageme
de Santarem, em estimulo de defesa contra
a invasão castelhana, como um dos traços mais
expressivos da physionomia pittoresca da patria,
essa torre data apenas do tempo de D. Manoel.
Não tem caracter propriamente architectural, é
uma simples peça de alvenaria quadrada. Mas o
seu estranho remate, em grande elevação, formado
pelo sino a descoberto, sustido na convergencia
superior de quatro varões de ferro, estribados obliquamente
nos quatro angulos da torre, e revestidos
de pucaras de barro, da olaria local, destinadas
a ampliar a sonoridade do bronze no tanger
das horas e dos signaes de rebate, dá-lhe uma
feição
verdadeiramente especial, inconfundivel, indelevel.
Não será talvez o mais monumental, o mais
nobre, o mais rico, mas é de certo o mais suggestivo,
o mais anedoctico, o mais interessante, o mais
carinhoso, o mais familiar, o mais lindo campanario
de toda essa tão formosa campina ribatejana,
o mais aberto sorriso agrario da terra portugueza.
[62]
Tudo envolve de penetrante poesia local essa velha
torre. O seu mesmo nome de
relogio das
cabaças
ou de
cabaceiro se allia
harmonicamente no
ouvido á lembrança das lezirias, das hortas, dos
paues, das courellas e dos olivedos, que o circumdam,
e fazem d'elle como que uma parte integrante
da paizagem, um natural rebento da terra. O aspecto
de improvisação e de interinidade d'essa
summaria ventana de sino, que parece armada em
quatro pampilhos, é uma verdadeira obra d'arte,
que lembra mais commoventemente do que nenhuma
outra inventada pelos architectos, a origem
arabe, a vida nomada, a tradição pastoral da
região em que surgiu.
Os conspicuos burguezes do senado de Santarem
não podem ter opinião sobre esta
questão de
esthetica, porque elles carecem absolutamente do
ponto de vista em que deve de ser considerada a
sua Torre das Cabaças, a qual evidentemente se
não construiu para que suas excellencias a alveitassem
doutoralmente de dentro dos paços do concelho,
ou cá fora na praça, de chapeus altos,
sobrecasacas
dominicaes e barbas feitas, abordoados
[63]
aos seus chapeus de sol, e muito mais garantidamente
cucurbitaceos que o seu proprio cabaceiro.
A Torre das Cabaças fez-se para ser olhada do
vasto campo da Gollegã ou do campo de Almeirim,
vindo do Valle, vindo de Coruche, de Benavente,
ou da Barquinha, atravez dos olivaes, das
terras de semeadura e das eiras do termo de Santarem,
de jaqueta e sapatos de prateleira, montando
uma egua de maioral, de cabeçada de esparto,
almatrixa de pelles e estribos chapeados.
O Cabaceiro de Santarem, com a sua cupula em
trempe, as suas cabaças de barro e o seu sino
grande de correr e de governar as horas, fez-se
para o largo e ridente campo ribatejano, fez-se
para os campinos, para os vaqueiros, para os almocreves,
e talvez se fizesse tambem para mim,
que não vejo em arte razão alguma plausivel para
que, como motivo ornamental de uma torre, á folha
do acantho ou ao chavelho em voluta da architectura
grega se prefira a nossa linda pucarinha de
barro vermelho de Reguengo, da Atalaia ou da
Asseiceira.
Não! o senado santareno tem de deixar ficar
[64]
onde ella está a sua tão caracteristica torre,
para
que se não diga que dos tres potes, que de antiga
tradição consta acharem-se soterrados na
Alcaçova,
um cheio de ouro, outro cheio de prata, outro
cheio de peste, a camara da localidade não
encontrou senão o ultimo para o despejar sobre
os monumentos publicos sujeitos á sua
jurisdição
e confiados á sua guarda.
Que sob o antigo regimen os vereadores de Santarem
deitassem a baixo a Torre do Alporão, para
passar uma rainha, é uma desdita em extremo lastimavel,
mas que sob o regimen vigente se deite
egualmente a baixo a Torre das Cabaças, para
que passem os proprios vereadores, é um desando
grande da publica administração para muito peior
do que estavamos no tempo da muito saudosa senhora
D. Maria I.
A torre da Sé Velha, de Coimbra, desapparece
no fim do seculo passado perante uma simplicidade
de processo, que bem demonstra quanto os
poderes publicos, desajudados de conselho artistico,
teem sido, em todo o tempo, inhabeis e incompetentes
para proteger os monumentos da nação.
[65]
Foi o meu amigo Theofilo Braga quem, ao
colligir no Archivo Nacional os documentos ineditos
das relações do marquez de Pombal com D.
Francisco de Lemos para a reforma dos estudos
na Universidade, descobriu a breve historia da
demolição da torre da Sé Velha. Em
carta de 3
de setembro de 1773, D. Francisco de Lemos dá
conta ao marquez de que demoliu a torre: «...A
dita torre era um montão de pedra e cal sem arte
e figura, que servisse de ornato á cidade, e antes
estava tirando a vista do Paço das Escolas, e de
muitas casas. E principalmente é muito nociva á
Imprensa, porque ficando ella no alto e esta embaixo,
lhe tirava o sol, com que a fazia menos
clara e humida. Pareceu-me conveniente á vista
de todas estas razões que se demolisse, o que se
tem executado, seguindo-se todas as utilidades
ponderadas acima, e egualmente a de haver pedra
para tudo o que foi preciso fazer.» Em sigla
marginal a esta carta opina o marquez de Pombal:
«Que está muito bem feita a providencia sobre
a torre da Sé antiga.» E em carta de 5 de outubro
do alludido anno de 1773, o marquez, em
[66]
stylo official, desenvolve a sua acquiescencia ao
estupido vandalismo de D. Francisco de Lemos:
«Tambem me pareceu bem ajustada a providencia
e resolução que V. Ex.
a
tomou de mandar demolir
a torre da Sé antiga que não servia mais
que de ser um
Padrasto sombrio e
infimo, só proprio
para desfigurar a formosura do Palacio a que
estava quase contiguo e de escurecer as actuaes
officinas, etc.»
Do mosteiro de Alcobaça desapparece todo um
claustro do tempo de D. Affonso Henriques.
Em S. Francisco d'Evora ampliam-se as dimensões
da rosacea no frontespicio da egreja, abalando
as cantarias circumstantes e pondo em risco todo
o equilibrio da empena. Além d'isso, para o fim
de aproveitar a pedra para outras applicações,
desampara-se a abobada, deitando abaixo a ala
do convento que lhe servia de encontro.
No castello de Palmella e em S. Salvador de
Paço de Sousa acham-se violados e deshonrados
pelo mais completo despreso, além das campas dos
cavalleiros de Santiago, o tumulo do principe D.
Jorge, e o tumulo de Egas Moniz, que em Paço
[67]
de Sousa dividiram em dois, pondo cada metade
para seu lado, em pontos oppostos da egreja. O
cofre de pedra que continha a ossada do fiel aio
de Affonso Henriques transforma-se em pia de um
bebedouro publico.
A sumptuosa egreja do convento de S. Francisco
em Santarem, fundação de D. Sancho II,
com as suas tres naves, as suas columnas de preciosos
capiteis e os floridos arcos da sua restauração
manoelina, converte-se em uma das cavallariças
do regimento aquartelado no convento.
Violaram-se todos os tumulos que encerrava o
claustro e occupavam a egreja, sem que esta, segundo
nos consta, fosse nunca dessagrada liturgicamente.
Parece que não houve tempo para satisfazer
essa tão breve formalidade de respeito.
As sarças, os silvados, e os subtis rendilhamentos
manoelinos do tumulo precioso do conde de
Vianna D. Duarte de Menezes, pela circumstancia
de ser a esculptura removida para S. João do
Alporão
pela benemerita commissão administrativa
do Museu Districtal de Santarem, escaparam miraculosamente
aos coices das bestas de guerra,
[68]
que o governo portuguez destinava ao sagrado
monumento erigido pela doce piedade conjugal á
memoria do leal e valoroso soldado de Affonso V,
que na conquista de Alcacer-Ceguer se deixou
morrer ás lançadas para salvar a vida do seu
rei.
O tumulo de D. Fernando, que estava na mesma
egreja, foi pela Associação dos architectos
trazido
para o museu do Carmo.
Um dente de D. Duarte, que a condessa de Vianna
encerrara, como unica reliquia de seu marido,
no monumento que lhe consagrara, conserva-se
ainda dentro do estojo que primitivamente o continha.
A ossada do rei D. Fernando, essa desappareceu,
como desappareceu a de D. Francisco de
Almeida, atirada para a cerca do quartel na occasião
em que se lhe destruiu o tumulo, aproveitando-se
a area de pedra em que jazia o corpo para
bebedouro especial dos cavallos com mormo.
As demais campas, que constituiam o pavimento
do claustro desde o principio do seculo XIV desappareceram
todas, e nem sequer se sabe já de quem
eram, por que, para não escorregarem os cavallos
[69]
do regimento, desempedrou-se o claustro e perderam-se
as lapides que n'elle se continham.
A sepultura de Pedro Alvares Cabral está na
egreja da Graça, um dos bellos templos da
fundação
da monarchia em Santarem. Esta egreja é cedida
pelo governo á pobre irmandade dos Passos.
A irmandade carecia de meios para custear
o decoro do culto e a conservação do edificio.
Occorria generosamente a essa despeza o proprietario
do convento annexo á egreja. O dono do
convento falleceu recentemente, legando a casa a
um azylo que n'ella fundou. A egreja da Graça de
Santarem está portanto, a bem dizer, desamparada.
A quem é que se acha confiado o tumulo de
Pedro Alvares Cabral? Não se sabe bem, e são
grandes, como pessoalmente tive occasião de experimentar,
as difficuldades que encontra quem
deseje dar com o depositario das chaves para ver
a egreja. Ás gloriosas cinzas d'aquelle que nos
deu o Brazil, a gente nem sequer sabe dar um
guarda.
O mausoleu do nosso S. Frei Gil corre aventuras
parecidas com as do mausoleu do rei D. Fernando.
[70]
Os marquezes de Penalva, parentes do
Santo, recolhem na capella do seu palacio em Lisboa
as cinzas do bemaventurado. A tampa do tumulo
com a estatua do Santo vem para o museu
do Carmo. A arca sepulchral, que encerrava os
seus restos, fica em Santarem, servindo de pia de
amassar cal para as obras do municipio.
Em Guimarães mascaram indignamente de cal
e de madeira as columnas e as arcarias da veneravel
egreja de Nossa Senhora da Oliveira, fundada
nos primeiros annos do seculo X pelo conde
Hermenegildo Mendes e por sua mulher a condessa
Mumadona. No claustro do seculo XIII, que
envolve uma parte da egreja, revestem de caixilharia
envidraçada a graciosa arcaria, e rebocam
espessamente a cal os capiteis das columnas. A
flammante janella gothica, que por cima da porta,
na fachada do templo, fazia explodir em apotheose
a polychromia do espelho, emoldurado na
sua larga cercadura esculpida de silvados, historiada
de estatuetas de santos em phantasiosos resaltos
de misulas, sob rendilhados baldaquinos, é
impiedosamente arrasada e substituida por uma
[71]
chapada de cantaria corrida, perfurada por quatro
oculos.
Em Santarem, na egreja do Milagre, pelas trovoadas
d'este verão, um raio fere o cone azulejado
da torre, penetra na capella mór, despedaça
a madeira do arco que a separa da nave, e põe a
descoberto, por baixo d'esse revestimento de
taboas
pintadas, os mais lindos lavores esculpturaes
de uma arcaria da Renascença, em que
cherubins voejam, sustendo grinaldas e cornucopias
floridas, por entre a laçaria afestoada, com
rotulos pendentes. Todos os relevos mais salientes
da esculptura haviam sido desbastados a picão
para nivelar a superficie da pedra em que assentara
a madeira.
Em Setubal, na egreja manoelina das freiras de
Jesus, besuntam as columnas, os artezões e os fechos
da abobada com a mais tosca e espessa camada
de pintura. O material subjacente é o lindo
marmore polychromico da Arrabida. A pintura a
que me refiro tem a intenção esthetica de imitar
a
borrões d'ocre esse mesmo marmore cuja superficie
tão sordidamente conspurca.
[72]
Quando ha quatro annos o governo mandou
pôr em hasta publica uma parte do convento de
Cellas, incluindo o seu encantador claustro, metade
do qual é do tempo de D. Diniz, uma voz
anonyma protestou, eloquente e energicamente,
contra semelhante desacato, por meio de uma pequena
brochura impressa em Coimbra e largamente
espalhada pelo paiz todo, a pedir soccorro
á imprensa. Rarissimos periodicos acudiram ao
rebate. Na parte que data do seculo XIV, o pequenino
claustro de Cellas, em arcadas de meio ponto
e columnas geminadas, de capiteis cubicos, historiados
por todos os lados com deliciosas figurinhas
representando os mais tocantes episodios da
vida da Virgem Maria, de Jesus e dos seus santos,
é a mais delicada, a mais commovida, a mais
poetica obra da arte portugueza n'esse interessante
periodo da transição do stylo romanico para
o advento do gothico, na evolução capital da arte
na Edade Media. A virginal candura, profundamente
enternecida, do artista desligado da preceituação
hieratica de uma esthetica que se extingue,
para entrar com toda a frescura intacta do sentimento
[73]
na sinceridade de uma arte nova, é invasivamente
tocante na concepção de varios episodios
d'esta composição, como o da
Annunciação, o do
Sonho de Nossa Senhora, o da Adoração dos Reis
Magos, o da Fuga para o Egypto, e o da
Crucificação
de Jesus, que, pela primeira vez nas
representações
d'este periodo, nos apparece flagellado
pela corôa de espinhos e com os dois pés
sobrepostos, fixados ao madeiro por um só cravo.
Acompanhando e envolvendo a primorosa obra
do esculptor, tudo no claustro de Cellas se compensa,
se pondera e se equilibra admiravelmente
para o fim de pôr em suggestão o pensamento que
d'essa obra deriva.
É uma construcção ineffavelmente pura,
toda
de intimidade e de religião, no sentido de cada
uma das suas partes e na harmonia total do seu
conjuncto. Nem a mais leve macula mundana, de
presumpção ou de orgulho. Nem um só
nome
profano, nem um unico emblema heraldico, brazão,
corôa, paquife, divisa ou empresa. Nada que
lembre da terra as ambições, a força,
a gloria ou
o brilho: nem quinas, nem lizes, nem pelicanos,
[74]
nem espheras. A mesma aconchegada
dimensão
do recinto, parecendo amoldado ao passo leve e
recolhido das freiras, as quaes se ouviriam a meia
voz de um extremo para o extremo opposto do
pateo; o stylobato em bancada revestida de azulejos
do tempo, enxadrezados em verde e branco;
a pequena altura dos fustes, proporcionados a
uma estatura de noviça, que poderia do chão
acarinhar as imagens dos capiteis com uma flôr
de açucena; a reclusa modestia da galeria superior,
em que o beiral do telhado se apoia ao parapeito
em curtos esteios de granito; a mesma vegetação
arbustiva, que ainda sobrevive á antiga
ornamentação floral do pateosinho ajardinado; as
diminutas capellas e os nichos que rodeiam a
claustra; tudo emfim concorda e condiz na mais
rara e doce harmonia de uma expressão intradusivel.
O claustro de Cellas é, pela extranhesa e
pela preciosidade da sua poesia e da sua arte,
uma especie de murmurosa fonte, ineffavel e perenne,
em que a agua não vem de alterosos e magestaticos
aqueductos cantar ao sol em taças brunidas
de prophyro ou de alabastro, suspensas por
[75]
grupos de naiades, de sereias ou de golfinhos, mas
rompe da rocha viva, como nas grandes altitudes
alcantiladas das nossas serras, manando em fio
tenue e crystalino, desnevada e purissima, escondida
entre fragas, a que se entra de rastos para ir
sedentamente beijal-a na sua humilde nascente
engrinaldada de violetas em flôr.
Providenciando sobre o destino de um tão delicado
monumento, posto em leilão pela quantia
de um conto de réis, dispunha o governo que os
capiteis das columnas se serrassem dos respectivos
fustes e se recolhessem n'um museu!
Não sei em que phase administrativa se acha
ao presente esse negocio. O que sei é que o primoroso
claustro de Cellas, medonhamente desaprumado
da perpendicularidade das suas columnas,
não espera senão o primeiro dos mais leves
pretextos para se desmoronar inteiramente.
Na linda egreja de S. João, em Thomar, abrem-se
na fachada principal, de cada lado de um portal
manoelino, duas janellas da mais corriqueira
e mais villôa cantaria.
Ha bem poucos dias ainda um distincto critico
[76]
nos revelava, em uma folha periodica, os desacatos
por que está passando o antigo mosteiro das
Bernardas de Almoster, construido para commemorar
o milagre de Santa Iria pela devota Berengaria
com a collaboração de Santa Isabel.
Na Sé de Braga as estatuas jacentes dos tumulos
do conde D. Henrique e de sua mulher foram
cortadas pelo meio das pernas para caberem nos
novos logares para onde as transferiram, e, com o
fim de não transtornar inteiramente a anatomia
dos personagens, pareceu util applicar os pés decepados
aos joelhos das figuras.
Na mesma egreja existe o bello tumulo em bronze
do joven infante D. Affonso, filho de D. João I,
obra mandada fazer em Bruxellas pela infanta portugueza
D. Isabel, mulher de Filippe o Bom. A estatua
do infante, em tamanho natural, repousava
deitada na tampa do mausoleo entre dois anjos em
adoração. A caixa tumular, ornada de
brazões, cingidos
de arabescos e silvados em relevo, descança
sobre leões. Em 1881 foram roubadas as cabeças
dos leões, os pés e as mãos da
estatua, e os dois
anjos que ladeavam a cabeça do principe. O templo
[77]
está completamente desfigurado do seu aspecto
primitivo. Empastaram-se os capiteis das columnas,
transformou-se a arcaria das naves, abriram-se
grandes janellas nas paredes da egreja,
adornaram-se os intervallos das capellas com enormes
estatuas dos apostolos feitas de pau, e pintou-se
tudo de branco―madeiras e cantarias.
A pedra da campa de Garcia de Rezende, sepultado
na encantadora ermida que elle mesmo
delineou e mandou construir na cerca do convento
de Nossa Senhora do Espinheiro, foi arrancada
da sepultura do nosso chronista, e serve presentemente
de banca de cosinha em casa de um cavalheiro
de Evora.
Os tumulos da familia de Abrantes acham-se
em tanto esquecimento e em tanto abandono na
capella do seu castello, como em Alcobaça os de
D. Pedro e D. Ignez de Castro; como em Paço de
Sousa o de Egas Moniz; como em Palmella o de
D. Jorge, em cujo testamento aliás se attribue uma
verba ás reparações d'aquella casa;
como, finalmente,
ainda ha pouco em Alemquer, o de Damião
de Goes, antes de haver sido reposto pelo sr. Possidonio
[78]
da Silva o busto do nosso chronista sobre
o seu jazigo da egreja da Varzea.
Na Vidigueira a camara auctorisa o povo a utilisar
em obras particulares as cantarias do castello
de Vasco da Gama, como se o solar do descobridor
da India não tivesse mais importancia historica
que a que se liga a qualquer pedreira.
Em Evora, para dar mais um metro ou metro
e meio de superficie a uma praça, a camara deita
abaixo a historica varanda da casa dos paços do
concelho, edificada em tempo de Affonso V, por
João Mendes Cecioso, o
pae dos pobres
d'Evora.
A varanda demolida, da qual pela primeira vez
se aclamou a independencia de Portugal depois
das famosas
alterações,
tão minuciosamente narradas
por D. Francisco Manoel de Mello na sua
Epanaphora politica, parece ter sido
obra de D.
João II.
Por muitas vezes se tem discutido na camara
eborense, e parece até haver sobre tal assumpto
uma resolução assente, o projecto inaudito de
eliminar
toda a bella alpendrada da praça, da rua
Ancha e da rua da Porta Nova.
[79]
Outra resolução da camara de Evora,
resolução
definitiva e aprasada para muito breve, é a de destruir
a pequena e tão graciosa egreja do convento
do Paraizo para o fim de estabelecer mais uma
praça entre as duas ruas de Machede e de Mendo
Estevens, ás quaes faz esquina aquelle templo.
A diminuta egreja do Paraizo, com os seus
dois arcos manoelinos, com os seus preciosos
azulejos do seculo XVI, em tapete mural, acompanhando
nas barras o recorte dos arcos em zig-zag,
e com o seu tumulo em ediculo de D. Alvaro da
Costa, é um dos mais graciosos documentos architectonicos
do seu tempo.
Pobre cidade de Evora, um dos nossos mais
vastos e mais preciosos museus de archeologia e
d'arte, preferindo como Santarem ser uma estupida
collecção de praças largas e de ruas
novas!
Por toda a Europa, os velhos bairros historicos
são hoje o thesouro das cidades que os possuem.
Em muitos logares, onde esses bairros não existem,
estão-os inventando, estão-os reconstituindo
em homenagem erudita e piedosa á
tradição historica,
á poesia do passado. A camara de Evora,
[80]
vangloriosa no pelintrismo das suas innovações,
bota abaixo os mais venerandos monumentos da
cidade; por outro lado improvisa ruinas scenographicas
no seu jardim publico, armando com
trepadeiras e malvaiscos grupos sentimentaes de
velhas columnas postas de pernas para o ar n'esse
effeito de bordado a cortiça ou a miolo de figueira;
pica os seus historicos brazões para fazer passeios
lisos de ruas novas aos seus janotas; e bate,
modernisante e festeira, sobre o epitaphio do mais
palaciano e do mais artistico dos seus escriptores
quinhentistas, a carne do bife consagrado talvez
ao penso d'algum dos seus novos reporters.
Mas eu é que não posso deixar de dizer
á cidade
de Evora, que o que a ella nos attrae e n'ella
nos retem não são as suas novas avenidas, nem as
suas praças, nem o seu lindo theatro, nem o seu
bello Passeio Publico. O que em Evora nos embelleza
e nos encanta, são os seus velhos mosteiros,
as suas antigas egrejas, os nomes das suas
primitivas ruas, estreitas e sinuosas, tão curiosos e
tão archaicos como o de
Valdevinos, o de
Alconchel,
o das
Amas do Cardeal, o do
Alfaiate da
[81]
Condessa; são os quadros
incomparaveis do seu
paço archiepiscopal; são os variadissimos
documentos
da sua architectura ogival e da sua architectura
da Renascença, tão especialmente amoiriscada
n'esta parte do Alemtejo; são os restos das
suas antigas industrias locaes, a olaria, a tapeçaria,
a caldeiraria, a sellaria e a carpintaria de moveis;
é talvez ainda a sua tradicional cosinha, a
doçaria
famosa dos seus conventos, a sua honrada assorda
de cuentros, e o seu bolo pôdre, de farinha de milho,
azeite e mel, como o que se comeria talvez,
entre os hebreus da Biblia, á mesa de Abrahão.
Com as improvisações do seu modernismo
Evora é como Vianna do Castello, Braga,
Guimarães,
Coimbra, Thomar, Santarem, ou Beja,
que sómente interessam os viajantes pela sua antiga
arte, e não valem realmente a pena de que
alguem as visite pelo que dão de novo.
Em Lisboa repudia-se a soberba egreja de Santa
Engracia, o mais bello dos nossos monumentos do
seculo XVII. O interior do templo é de uma magnificencia
magestosa. A riqueza dos marmores
sómente se pode comparar á de Mafra. A
mão
[82]
d'obra é de uma perfeição magistral a
ponto de
parecer indestructivel. Aproveitada para pantheon
nacional esta egreja seria um dos mais imponentes
edificios da Europa. Falta unicamente á sua
conclusão
a cupula do tecto e o lageamento do chão.
Taparam-lhe o arco da entrada a pedra e cal, não
tem cobertura, e está servindo de armazem de
arrecadação
do inutilisado material de guerra do Arsenal
do Exercito.
A inoffensiva capellinha das Albertas, bem interessante
pela ornamentação tão portugueza dos
seus embrechados, ha poucos dias ainda acabou
de desapparecer, como o convento da Esperança,
sem se saber porque, nem para que.
A restauração, que recentemente padeceu a
egreja de S. Vicente de Fóra, tão particularmente
notavel pelos bellos mosaicos portuguezes que a
exornam, caracterisa-se bem no mau gosto da pintura
com que se maculou a nobreza d'aquelle templo.
Os attentados de restauro de que ainda nos tempos
modernos tem sido objecto a Sé de Lisboa são
tão lastimosos quanto innumeraveis.
[83]
Finalmente, ao lado da Torre de Belem, o mais
peregrino entre os mais bellos monumentos da
nossa architectura, estabelece-se o gazometro da
companhia de illuminação a gaz! A esbelta
silhueta
rendilhada do mais suggestivo padrão da nossa
gloria militar e maritima, já não emerge da areia
loura do Restello, em deslumbradora apotheose,
na vasta luminosidade do ceu e da agua, destacando-se
das collinas de Monsanto, como a alvura
de uma hostia em elevação se destaca do fundo
de um retabulo esmeraldado, em altar de ouro
fulvo, sob uma abobada azul. Sacrosanta pela sua
expressão moral, como a immaculada estalactite,
formada á beira do mar pela concreção
mysteriosa
de todas as lagrimas, de saudade, de ternura, de
consternação e de enthusiasmo, choradas por um
povo de embarcadiços; sacrosanta na sua forma
artistica, como aquelle dos monumentos de Portugal,
em que o genio lusitano da Renascença,
mais expressivamente se revela como dominador
da India, a Torre de Belem emparceira-se com a
chaminé do mais vil e sordido barracão, a qual
sacrilegamente a cuspinha e enodôa com salivadas
[74]
de um fumo espesso, gorduroso e indelevel,
como se a incomparavel joia d'esse marmore, que
o sol portuguez carinhosamente sobredourara pelos
afagos de tres seculos, houvesse sido tão subtilmente
cinzelada pelos artistas manoelinos para
escarrador de mariolas, por cima do qual todavia
ainda algumas vezes, em dias de gala, se desfralda
e tremula o pavilhão das quinas, mascarrado de
carvão como um chéché de entrudo.
Ministerios de todos os diversos partidos politicos
se revezam consecutivamente no poder, sem
que nenhum d'elles pareça attentar em um tal desdouro,
expressão viva do mais abandalhado rebaixamento
a que, perante as suas tradições historicas
e artisticas, podia chegar a degeneração de
uma raça. Por seu lado o parlamento e a imprensa
são insensiveis á responsabilidade de taes
civicias,
porque esses dois poderes do Estado, enrascados
na baixa intriga partidaria, immobilisados n'ella,
como um enxame de pardaes n'uma bola de visco,
de ha muito que perderam o sentimento de nacionalidade
e a noção de patria, relaxando completamente
aos archeologos, aos poetas e aos artistas
[85]
a unica legitima representação, desinteressada e
altiva, do espirito portuguez.
Consta no emtanto que brevemente será celebrado
em Lisboa o centenario da India; e da comprehensão
que temos d'esse feito culminante da
nossa historia maritima daremos ao extrangeiro
um testemunho definitivo, mostrando o monumento
que commemora tal façanha, envolto, como
nas dobras de um crepe, pela fumaçada de uma
fabrica, que nós mesmos lhe puzemos ao pé, para
o deshonrar.
Se do exame da architectura dos nossos monumentos,
passamos ao exame das artes decorativas,
da pintura e da esculptura amovivel, é
mais lastimoso ainda o espectaculo da nossa incuria.
Ao clero portuguez cabe principalmente a gloria
de haver conservado o que ainda resta do nosso
patrimonio artistico.
Das galerias particulares de pintura que o conde
de Raczynski ainda encontrou em Portugal, no
anno de 1845, quasi tudo se sumiu.
[86]
Demoliram-se, desappareceram, ou foram transformadas
pela mudança de dono, pela mudança
de destino, pela transformação mais radical da
vida interior que as animava, quasi todas as casas
que ainda em 1840 eram o typo das habitações
nobres em Lisboa.
Citarei, ao acaso da memoria: o palacio da
marqueza de Niza, a Xabregas, fundado no seculo
XV pela rainha D. Leonor; o palacio chamado
dos Patriarchas, o de Pessanha e o do
conde de S. Miguel, á Junqueira; o do marquez
de Pombal ás Janellas Verdes; o do conde de
Carvalhal na Rocha do Conde d'Obidos, famoso
outr'ora pela collecção das suas mobilias;
á Cotovia
o do conde de Ceia e o do conde de Povlide;
no Calhariz os de Braancamp, do duque
de Palmella e do marquez de Olhão; o do marquez
de Castello Melhor e o do conde de Lumiares,
no antigo Passeio Publico; na collina do Castello
o do marquez de Ponte de Lima, o do marquez
de Alegrete, o do marquez de Tancos; no
Campo de Santa Clara o do visconde de Barbacena,
o do conde de Resende, o do marquez de
[87]
Lavradio, e um pouco mais para leste o do conde
da Taipa; o do visconde da Bandeira, a S. Domingos;
e finalmente o do marquez de Borba, o do
conde de Almada, e o do morgado de Assintis,
cujo theatro era o mais sumptuoso entre todos os
numerosos theatrinhos particulares que havia em
Lisboa no principio do seculo, como o do barão
de Quintella, o do visconde de Anadia, o do conde
de Almada, e o do conde de Sampaio.
A maior parte d'essas casas eram ainda, pelo
seu antigo recheio, apesar dos estragos do terremoto,
apesar da rapina da invasão franceza, verdadeiros
sanctuarios d'arte. Mobilavam-as as mais
ricas peças das industrias do Oriente que existiam
na Europa, escriptorios, papelleiras e bahus monumentaes
de charão, bufetes e contadores feitos
na India ou fabricados em Lisboa por marceneiros
aqui educados, no tempo de D. Manoel, por
artistas indianos.
Os serviços de mesa e os vasos decorativos
eram das mais antigas e das mais preciosas porcellanas
da China e do Japão. A collecção das
colxas e dos panos de armar, com que no dia da
[88]
procissão de Corpus-Christi se revestiam inteiramente
as fachadas de todos os predios da Baixa,
eram de brocado, de damasco, de setim e de veludo,
constellados a matiz e a ouro nos mais deslumbrantes
desenhos persas.
Os bragaes, de linho da Hollanda, da Flandres e
do Reino, arrecadavam-se nas sumptuosas caixas
encouradas, que foram no seculo XVI uma das industrias
famosas de Lisboa.
Nas gavetinhas dos contadores e nos escaninhos
dos armarios e das arcas estavam as joias,
as rendas, os aljofares, os entretalhos, os firmaes,
as chaparias, os ouros de martello, e as obras mais
diminutas e subtis das antigas bordadoras e colxoeiras
de Lisboa,―restos de coifas, de face e
gravis, redes, cadenetas, desfiados.
As baixellas brazonadas, de ouro e prata, levantadas
em bestiões e em silvados, a martello, ou
cinzeladas por emulos de Benvenuto Celini, trasbordantes
de ornato, em encaiches de arabescos e
de laçarias, eram um luxo commum a todas as familias
nobres, e refulgiam pelas grandes festas do
anno em todas as casas de jantar.
[89]
O mogno francez do imperio, com as suas
applicações
de bronze, representando fachos, pyras
ardentes, lyras e tropheus de guerra, invadira com
as modas da revolução liberal muitas casas
lisboetas,
sem todavia desthronar inteiramente o
precioso mobiliario da Renascença, em cedro, em
pau rosa, em sandalo, em nogueira, em carvalho
ou em ebano, ao gosto mudegar ou ao gosto florentino,
embutido de marfim, de madreperola, de
prata, de esmaltes limosinos ou aragonezes. Abundavam
as cadeiras e os catles de couro lavrado
ou de guadamecim, cravejado no carvalho ou no
pau santo com pregos cinzelados de cobre ou de
prata; e nas poltronas, nas commodas, nas meias-commodas,
nos escaparates, nas cadeirinhas, nas
molduras dos espelhos e das sobreportas predominavam
as formas curvilineas da influencia de
Luiz XIV e de Luiz XV na época de D. João V e
de D. Maria I.
Na talha dos oratorios encontravam-se alguns
d'esses baixos relevos em madeira, polychromicos,
em escala mui clara, tão caracteristicos da
nossa esculptura em madeira do seculo XVII, bem
[90]
accentuadamente revelada nas obras de Bouro, de
Tibães, de S. Gonçalo de Aveiro, e da
Sé Nova de
Coimbra.
O presepio era um appendice por assim dizer
obrigatorio; sempre que não occupava um compartimento
especial da casa, o presepio concentrava-se
na sua machineta em forma de urna, semelhante
ás que se destinavam a conter uma cella
de Santo Antonio ou uma arribanasinha de menino
Jesus.
Todas as familias historicas tinham a sua mais
ou menos consideravel galeria de pintura: paineis
de devoção, retratos de antepassados, e um ou
outro
quadro de genero ou de paizagem, em tela ou
em cobre, attribuidos a Breughel, a Rosa di Tivoli,
a Tenniers ou a Rubens, obras em geral apocryphas
e mediocres. Grassavam, com tenacidade talvez
excessiva, as Josephas d'Obidos e os Morgados
de Setubal, mas entre os retratos do seculo
passado, encontravam-se alguns preciosos, como
os de Pelegrini em casa dos viscondes de Anadia,
como os pintados por Madame Guiard, por Gérard
e por Therbouché, em casa do visconde de
[91]
Sobral. Entre os quadros de devoção destacavam-se
frequentes obras primas nacionaes, do
seculo XVI, referidas á vida da Virgem Maria, á
lenda de Santa Ursula, aos agiologios de alguns
santos portuguezes, como Verissimo, Maxima e
Julia.
Nos sotãos d'essas antigas casas havia
accumulações
seculares de moveis inutilisados, de miudezas
rejeitadas e esquecidas, com as quaes se sepultariam
documentos inapreciaveis para a historia
da nossa influencia na evolução europeia das
artes sumptuarias: cadeiras aluidas e canapés
desconjuntados,
desusados manicordios, velhos cravos
de charão, abandonadas espinetas, em cujo
teclado amarellecido se teriam dedilhado as primeiras
composições de Palestrina e de Cimarosa;
antigos arreios de tiro e de sella, braseiras, perfumadores,
lanternas e candieiros de cobre, velhos
palmitos contrafeitos de conchas e de pennas, montões
de manuscriptos, montões de gravuras, dentes
de elephante, ferrugentas clavinas de pederneira;
e, entre feixes de cacetes e de chibatas de
marmelleiro, talvez, desarticulado e roto, algum
[92]
d'esses chapeus de sol, que nós fomos os primeiros
que fabricámos e que introduzimos na Europa,
ou algum d'esses primitivos leques, em quarto de
circulo, que os companheiros de Fernão Mendes
Pinto trouxeram da China, com os primeiros apparelhos
de chá, com os primeiros vasos de porcellana,
com as primeiras caixas de sinaes e pastilhas,
doando a Roma e a Florença, a Paris e a
Londres todos os principaes attributos e os themas
fundamentaes de toda a arte da casa e de
toda a elegancia feminina da civilisação moderna.
E tudo isso desappareceu, ou se está evolando,
com o successivo desmanchar de todas as velhas
casas, n'um saudoso e doce perfume de camphora,
de mofo, de alfazema e de bejoim, errante no ar
dos casarões despejados.
Estão nas bibliothecas extrangeiras, em França
e na Inglaterra, as mais preciosas illuminuras dos
nossos codices e das nossas arvores genealogicas.
Das encantadoras figurinhas dos presepios de
Faustino José Rodrigues, de Antonio Ferreira, de
Machado de Castro, já não ha intacta
senão a
collecção da Sé.
Destroçaram-se as da Madre de
[93]
Deus, do Coração de Jesus e do marquez de Borba
em Santa Martha.
O que ainda persiste da obra tão curiosa e tão
caracteristica dos barristas de Alcobaça está ao
desamparo no abandono d'aquelle incomparavel
monumento.
Lanças, espadas, adagas, elmos de todas as
fórmas―almafres,
capellinas, bacinetes, barbudas e
morriões―, couraças, escarcellas, grevas,
manoplas,
escudos e rodellas, todas as peças, emfim,
da armadura dos nossos heroes da Africa e da
India, desappareceram com as balças, as sinas, os
estandartes e as bandeiras das suas hostes.
A espada de Vasco da Gama é hoje propriedade
de um particular, que ha pouco tempo adquiriu
por compra essa reliquia nacional.
Uma espada e um capacete de torneio, que se
diz terem pertencido ao Mestre de Aviz, peças
ferrugentas, sujas, sem estojo nem outro qualquer
resguardo que as defenda da irreverencia do publico,
estão na Batalha á mercê dos
moços, dos
pedreiros e dos visitantes, que de chacota se adornam
com essas armas, em galhofa carnavalesca.
[94]
Na cathedral de Toledo, na soberba capella dos
Reis Novos, preciosamente edificada por Alonso
de Covarrubias, em tempo de Carlos V e por
disposição
testamentaria de Henrique II de Trastamara,
vê-se uma armadura portugueza. Guardada
por castelhanos, essa armadura suspende-se, d'entre
os ornatos platerescos da capella, por cima do
órgão, em todo o respeito devido a um
trophéo
sagrado. E um dos guardas da cathedral, explica
ao publico, apontando essa reliquia:―«Aquella é
a armadura do alferes portuguez Duarte de Almeida,
o qual, batendo-se na batalha de Toro
contra nós outros, tendo tido decepadas as duas
mãos, morreu ás lançadas, segurando
nos dentes
a bandeira do seu rei.» E em frente do arnez,
que vestiu o corpo sanguento e exanime de um
inimigo, Castella inclina-se reverente e commovida,
fazendo-nos corar, perante a grandeza de
tal exemplo, da lenda grosseira em que envolvemos
a pá da padeira Brites―
Quantos vivos
rapuit
omnes esbarrigavit,―a qual pá uma esperta
e linda creada de Aljubarrota faz o favor de ir
buscar, e de tirar de dentro de um saco, para a
[95]
mostrar n'um patamar de escada aos viajantes
que para esse fim lhe vão bater á porta.
Não está feita nem estudada a historia dos nossos
vidros, dos nossos esmaltes, da iconographia
da nossa habitação, e do nosso trage.
Uma das obras primas da nossa joalheria, a
propria custodia de Belem, lavrada por Gil Vicente,
o famoso ourives, tio do poeta, acha-se desfigurada
nas suas dimensões primitivas pela
interpollação
de um novo hostiario e de duas pilastras,
que já não são do primeiro ouro das
conquistas,
mas de simples prata dourada.
Depois dos tão numerosos e tão grosseiros erros
a que tem dado origem a investigação da
identidade
de Grão Vasco, a historia, a
classificação e
a attribuição da nossa incomparavel pintura do
seculo XVI, encontra-se ainda por fazer.
A restauração dos antigos quadros está
constituindo
na historia da nossa arte uma catastrophe
ainda mais destruidora que a da restauração da
nossa architectura.
Alguns annos mais sobre o systema devastador
que se está seguindo, e ninguem poderá reconhecer
[96]
nas taboas da nossa grande época uma só pincelada
dos admiraveis discipulos e dos emulos que
tiveram em Portugal os Van Eik, os Memling, os
Gerard David, os Van der Weiden, os Quinten
Massys ou os Dierik Bouts.
N'essa prodigiosa pintura nacional, em que tivemos
por mestres os flamengos, acha-se todavia
registrada a historia de toda a vida portugueza
desde o meiado do seculo XV até o fim do
seculo XVI, isto é, durante o periodo do nosso
maior brilho e da nossa maior riqueza, no apogeu
da nossa gloria. São raras as puras
composições
historicas e raros os retratos d'esta época. Os
grandes feitos da navegação e da guerra
celebravam-se
de preferencia nas tapeçarias, que se perderam,
e constituiam o principal adorno d'arte
dos paços dos reis e dos palacios dos nobres. Na
pintura religiosa, porém, e nos quadros votivos,
conservados nas egrejas e nos conventos, as figuras
do seculo misturam-se em brilhante anachronismo
ás figuras sagradas, e muitas authenticas
physionomias se accusam energicamente nos pomposos
cortejos que envolvem as scenas biblicas. A
[97]
memoria do que fomos está ahi, por nós mesmos
consagrada, com o maior esplendor a que chegou
o nosso genio artistico, nas taboas dos paineis, no
pergaminho das biblias e dos devocionarios portuguezes.
Ahi estão os reis, as rainhas, os sacerdotes,
os guerreiros e os letrados portuguezes do cyclo
da renascença. São essas as caracteristicas
figuras
dos nossos avós: as faces cheias, a pelle tostada,
a carne rija, os olhos rasgados, as boccas imperativas.
A essas nobres e delicadas cabeças femininas
serviram de modelo as mais lindas mulheres
da Lusitania, de olhos de amendoa, malicioso olhar
avelludado, obliquo e enygmatico, sobrancelhas
longas alteando nas fontes, rostos ovaes, boccas
quentes e vermelhas, queixo carnudo vincado na
base, testa arredondada e lisa, cabello espesso e fino
apartado ao meio em duas curvas de bambolim,
e uma gesticulação leve, sinuosa e ondulante.
Teriamos
que interrogar longamente, laboriosamente,
esses venerandos paineis para apprender tantas
coisas que ignoramos da physionomia do nosso
passado, o trage, as armas, as joias, a mobilia,
os utensilios da casa e os estados do espirito.
[98]
O estudo completo d'esses quadros constituiria
a mais importante, a mais bella obra da nossa
historiographia.
A patria portugueza segundo os documentos da
pintura nacional nos seculos XV e XVI, poderia ser
o titulo d'esse incomparavel livro, em que collaborariam
todas as aptidões intellectuaes de que
dispõe o paiz, por meio de successivas monographias,
relativas a cada ramo do saber e comprehendendo
todos os pontos de vista em que pode
ser considerado o quadro:
1.º
Os aspectos da paizagem, os
caracteres
da
flora e da
fauna portugueza, que nós
tão
opulentamente enriquecemos, pelo commercio
das conquistas e dos descobrimentos; no tempo
em que Lisboa era o primeiro jardim de
acclimatação,
o primeiro jardim zoologico e o primeiro
mercado da Europa, pela introducção do
chá, do café, do assucar, do algodão,
da pimenta,
do gengibre do Malabar, da canella de
Ceylão, do cravo das Molucas, do sandalo de
Timor, das teccas de Cochim, do bejoim do
Achem, do pau de Solor, do anil de Cambaya,
[99]
da onça, do elephante, do rhinoceronte, do cavallo
arabe.
2.º
O mobiliario, cuja
fabricação tão fecundamente
desenvolvemos por meio de officinas estabelecidas
em Lisboa por artifices indianos, e estabelecidas
na India por artifices portuguezes, sob
a administração de Affonso de Albuquerque.
3.º
A indumentaria, comprehendendo,
além da
historia do
traje, a dos
tecidos, a dos
bordados e a
das
rendas, industrias procedentes
da China, da
Persia, de Benguella, tão profundamente influenciadas
pelo nosso contacto nas suas origens, tão
especialmente desenvolvidas no Reino, pelo lavôr
do paço, onde trabalhavam ao bastidor e á agulha
as mais pacientes e subtis
lavrandeiras mandadas
á rainha pelos capitães da India.
4.º
As armas, de guerra, de torneio
e de côrte.
5.º A
ourivesaria e a
joalharia, abrangendo a
analyse das alfaias religiosas, lampadas, tocheiros,
relicarios, thuribulos, retabulos, a tão curiosa
evolução
em Portugal da fórma e do ornato dos calices,
das custodias e das cruzes; e na ourivesaria
profana as innumeraveis peças em ouro ou prata
[100]
da baixella e da joalharia portugueza da Renascença,
como escudellas de faldra e de orelhas, salseiros,
oveiros, vinagreiras, almofias, tumadeiras,
almaraxas, escalfadores, confeiteiras, perfumadores,
esquentadores, brazeiros, pomas-candis, alcaforeiros,
taxos de perfumar luvas, copas, taças,
gomis, bacias d'agua ás mãos, maças,
chaparias
de gualdrapa, andilhas, estribos, taboas de cavalgar,
guarnições de cavallo, com rosas, sostinentes
e copos; cofrinhos, arrecadas, firmaes, pontas de
ouro, brochas de livro, cadeias, guarnições de
coifa, trançadeiras, crochetes, cintas, tiras de
cabeça,
tiratestas, dormideiras de ouro para volantes,
e as contas variadissimas de filigrana mourisca,
de ambar das Maldivas, de almiscar da
China, de rubis do Pegu, de diamantes de Narsinga,
de perolas de Kalckar.
6.º
As
embarcações―galeões,
naus, caravellas,
bergantins, fustas, toda essa portentosa
collecção
dos nossos barcos de guerra e dos tão variados
typos empregados na cabotagem e na pesca, testemunhos
sobreviventes ainda hoje do nosso genio
maritimo e das suggestões do mais remoto
[101]
trato do oceano, como se demonstra na forma
dos saveiros, que trouxemos do Bosforo, e na da
muleta do Seixal, que é o navio grego do tempo
de Herodoto.
7.º
A olaria e a cestaria popular,
em que tão atticamente
se affirma o hereditario engenho artistico
da nossa raça, e cujos productos tanto se compraziam
em reproduzir os nossos pintores.
8.º Emfim:
A psychologia das
figuras pela physionomia,
pelo gesto, pelo sorriso, pelo olhar; os
usos e os costumes; os temperamentos predominantes;
a moda, o toucado; o corte do cabello, o
talho da barba, etc.
Da pintura portugueza, que constitue a mais importante
parte da riqueza artistica da nação,
não
ha porém catalogo, nem inventario, nem rol. Nos
nossos depositos de antigos quadros, em Lisboa,
em Coimbra, em Vizeu, em Thomar, em Lamego,
em Evora, em Setubal, o povo portuguez passa
indifferente, abstrahido, expatriado, sem guia que
o condusa ás fontes da tradição e da
nacionalidade,
em que cada um de nós tem a mais restricta
e a mais instante obrigação de ir retemperar e
fortalecer
[102]
de portuguezismo o seu sangue, dessorado
pela mais falsa educação a que se pode condemnar
um paiz.
Não ha collecção publica,
chronologicamente
completa, dos nossos incomparaveis azulejos. Esta
industria artistica é no emtanto d'aquellas de que
mais legitimamente nos podemos gloriar. Até o
seculo XVII o azulejador portuguez acompanhou a
evolução peninsular, de influencia mudegar e de
influencia italiana. Desde o seculo XVII adoptamos
o gosto hollandez, e no seculo XVIII os nossos artistas
desenvolvem no azulejo azul e branco, em
vastas composições historicas e de genero,
paizagens,
merendas, caçadas, allegorias religiosas e
lendas monasticas, enquadradas em bellas grinaldas
polychromicas, o mais seguro e adestrado talento
de composição historica e decorativa.
Raro será o anno em que de Portugal não tenha
desapparecido um quadro inestimavel ou um
codice precioso, sem qualquer apparencia de
coherção,
sem o minimo reparo, ao menos, do poder
executivo, das côrtes ou da imprensa. Á hora
a que escrevo estas linhas me dizem que está á
[103]
venda ou vendido em Londres um livro de horas
com que o rei D. Manoel brindára um fidalgo da
sua côrte, ordenando-lhe que vinculasse esse manuscripto,
que era uma gloria da nação.
Não é, em rigor da verdade, muito mais risonho
que o destino das obras d'arte que saem para
o estrangeiro o destino das que ficam no paiz.
É bem conhecida a historia do primeiro dos
nossos museus industriaes, fundado em Lisboa
por Fradesso da Silveira. Esse museu extinguiu-se
suavemente, a pouco e pouco, até chegar a
não existir do deposito primitivo senão unica e
exclusivamente as prateleiras em que elle havia
sido collocado.
O rico museu das antiguidades do Algarve, recolhidas
ha dezeseis annos por Estacio da Veiga,
ainda hoje se não acha instalado.
Da inestimavel collecção das antigas
peças de
louça e de obras de barro, que haviam pertencido
ao convento da Madre de Deus, e que o architecto
Nepomuceno recolhera em uma das casas d'aquelle
edificio, desappareceu tudo.
Tão vasta é a nossa riqueza artistica e
tão profundo
[104]
o desleixo de a escripturar, que são quasi
tão frequentes as surpresas no que se encontra
como no que se perde.
Como exemplo direi que era assentado não haver
em Portugal vestigio algum da influencia immediata
de Van Eik na pintura portugueza, e não
existir do infante D. Henrique, o Navegador, mais
que um retrato, na miniatura annexa ao bello
manuscripto de Azurara, presentemente propriedade
da
Bibliothèque
Nationale, em Paris. É entretanto
nosso, e existe em Portugal, um retrato egualmente
contemporaneo e authentico, em tamanho
natural, magistralmente pintado a oleo sobre madeira.
Esse retrato precioso, inteiramente desconhecido
do publico, eu mesmo o vi no dia 19 do
mez de julho de 1895. Faz parte de um grupo de
varios personagens, é da segunda metade do seculo
xv, e pertence a um jogo de quatro paineis, de
dimensões eguaes, relacionados entre si por analogia
de data e de assumpto. Está bem conservado,
e acha-se, com os tres da serie a que pertence, no
corredor do claustro de cima no edificio de S. Vicente
de Fóra, no vão de uma janella, junto dos
[105]
aposentos habitados n'essa occasião por s. ex.
a
revd.
ma o sr.
arcebispo
de Mitylene.
O illustre escriptor inglez sr. Prestage mandou
fazer d'esse retrato uma reproducção
photographica,
destinada a illustrar a nova edição ingleza
da
Chronica da Guiné.
Na linda egreja do convento de Santa Iria, que
o fallecido architecto Nepomuceno comprou por
300$000 réis, e se achava encorporada no mosteiro
fundado por D. Maria de Queiroz, viuva de
Pedro Vaz de Almeida, veador da fazenda do infante
D. Henrique, ha um retabulo em baixo relevo
de bella pedra d'Ançan, que é simplesmente,
pelo desenho, pelo stylo, pela mão d'obra e pelo
estado de conservação em que se acha, uma das
obras capitaes da esculptura da Renascença em
Portugal. Compõe-se de dezesete figuras. Junto
da cruz, de que pende a mais ideal figura do Redemptor,
está prostrada Santa Maria Magdalena.
Acompanham-a a Senhora da Soledade, as tres
Marias, Nicodemus, José de Arimathea e S. João
Evangelista. No primeiro plano, dois soldados a
cavallo, em magnifico trage do seculo XVI. Enquadra
[106]
a composição um bello portico, de columnas
e tabellas preciosas, chancellado pelo brazão dos
Valles. Só outro Calvario, o do claustro do Silencio,
em Coimbra, obra, por certo, do primeiro dos
esculptores de Santa Cruz, hoje profundamente
cariada e quasi delida, se poderia comparar, de
par com o pulpito da mesma egreja, á esquecida
esculptura da abandonada egreja de Thomar.
Em egual descaso e esquecimento, ignorado da
grande maioria dos viajantes e dos estudiosos, o
monumental e sumptuosissimo panthéon dos Silvas,
da preclara familia de D. Ruy Gomes, em S.
Marcos, cerca de Coimbra. O bello portal alpendrado
d'esta egreja tem a data de 1510. Os cinco
sarcophagos de que se compõe o jazigo verdadeiramente
regio dos Silvas, assim como o retabulo
em pedra no altar mór da egreja constituem uma
preciosidade esculptural de valor incomparavel.
Este admiravel repositorio da nossa esculptura
quinhentista foi ha poucos annos vendido, com a
cerca adjunta do extincto mosteiro, pela quantia
de seis contos de réis.
Os preciosos quadros da pintura portugueza do
[107]
seculo XVI, completamente desarrolados, despercebidos
dos compradores extrangeiros, e ainda hoje
dispersos pelo paiz, são em numero talvez superior
aos dos quadros de mesma época recolhidos
pelo estado depois da abolição das ordens
religiosas.
O illustre critico sr. Joaquim de Vasconcellos
tem, só á sua parte, noticia de não
menos de cem
obras desconhecidas do publico. Das que existem
no Museu Nacional de Lisboa, na arrecadação da
Academia das Bellas Artes e nos demais depositos
do paiz, não ha uma só photographia registrada
pelo Estado, á semelhança do que se faz em todos
os museus do mundo.
Por occasião da ultima exposição,
tão interessante,
realisada nas salas devolutas, das Janellas
Verdes, para celebrar o Centenario de Santo Antonio,
a direcção das Bellas Artes não
respondeu
ao pedido da modesta quantia de 50$000 réis
que a commissão executiva da mesma
exposição
lhe dirigiu para que se publicasse o respectivo
catalogo, que ficou em manuscripto na mão do
redactor.
Por essa mesma occasião os peritissimos e benemeritos
[108]
photographos portuenses Emilio Biel &
Companhia, aos quaes tão valiosos e desinteressados
serviços devem as artes portuguezas, dirigiram
ao governo uma proposta para reproduzir
pela photographia,―sem subsidio algum do thesouro―todos
os objectos expostos no palacio das
Janellas Verdes. Esta proposta ficou egualmente
sem despacho.
Inutil me parece alludir ainda á dispersão das
mais ricas peças do mobiliario portuguez do seculo
XVI e d'essa segunda renascença artistica e
industrial do nosso seculo XVIII.
Bufetes, arcas, armarios, contadores, tapeçarias
da Persia, bordados e rendas do reino, couros lavrados
e guadamecins, azulejos, porcellanas antigas
da India, do Japão e da China, credencias,
leitos torcidos ou empennachados, canapés e cadeiras
curvilineas ao gosto da Pompadour de Odivellas,
espelhos afestoados, de toucador e de sacristia,
damascos da Real Fabrica das sedas, louças
artisticas do Rato, da Bica do Sapato, do
Porto, de Vianna, do Cavaquinho, da Panasqueira,
de Darque, das Caldas, de Estremoz, de Coimbra,
[109]
tudo o bric-à-brac extrangreiro nos leva em
cada anno, com uma cubiça e uma rapacidade
que bem melancholicamente lembra a dos enviados
de Verres no saque da Sicilia, do qual dizia
Cicero que só ficou da arte o que a ganancia não
quiz. Ainda ha Verres, como no tempo do velho
mestre romano, mas já não ha verrinas.
D'esta desorganisação geral de toda a policia
da arte resulta mais ou menos lentamente, a quebra
da tradição esthetica nacional, que é
a seiva
de toda a producção artistica.
Á infecundação do individuo pelo
espirito da
raça corresponde o desfallecimento do poder creativo,
a inercia da intelligencia, a esterilidade do
estudo, a degeneração da phantasia, o
abandalhamento
do gosto, a atrophia do proprio caracter, e,
em ultimo resultado da decadencia geral, a
desnacionalisação
pelintra de todo um povo.
Com o rebaixamento da arte rebaixa-se tudo,
porque no mundo é producto da arte tudo o que
não é unicamente obra da natureza.
O homem degenera, porque, sempre e em toda
a parte, o homem toma fatalmente a configuração
[110]
das coisas que o rodeiam e, para assim dizer, lhe
enformam a personalidade.
Dissolvido o culto artistico pela negligencia ou
pela inepcia de abastardadas classes dirigentes, os
fieis debandam por não haver egreja que os reuna,
e é já evidente esta enorme catastrophe: que na
arte de Portugal faltam corações portuguezes.
Fere-nos já esse phenomeno consternador em
todos os aspectos da vida intellectual.
Em resultado de não termos uma historia geral
da arte portugueza, devidamente systematisada
e integralmente documentada em cada um dos
seus capitulos, vemos grassar, não só entre o
vulgo
mas entre pessoas de saber, incumbidas de guiar
e de reger a opinião, o erro criminoso, profundamente
desmoralisante, de que somos um povo
inesthetico, incapaz de concepções artisticas
originaes.
A juventude litteraria, dotada de uma consideravel
força de applicação e de talento,
traz-nos
uma poetica exotica, de climas nevoentos, anti-meridional,
e vem falando uma lingua secreta, cabalistica,
interessantemente engenhosa, incomprehensivel
[111]
para o povo e para todos os que não estiverem
iniciados na morphologia espiritica das
novas seitas.
Em toda a historiographia contemporanea se
nota uma glacial frieza de critica, uma anemica
pallidez de expressão, um geral entono de
apagada tristeza, em que bem se demonstra que
não circula o sangue vermelho da raça, nem se
retrata
do vivo o genio do nosso povo, meigo, docil,
de apparencia branda, mas ainda hoje eminentemente
sociavel, amando a grande alegria estridente
das feiras, das tardes de touros, das romarias
dos seus santos populares, conservando nas
infimas camadas sociaes um residuo trovadoresco,
de paladino e de menestrel, susceptivel ainda das
paixões mais profundas, todo de
improvisação e
de repentismo, capaz das coisas mais imprevistamente
grandes, poetico, aventuroso e destemido.
Na poesia, assim como na pintura e na musica,
não ha uma escola portugueza, porque, na falta
de laço social que congregue os nossos artistas,
sem elementos coordenados de estudo, sem modelos
patentes, sem lição commum, não ha
entre
[112]
elles mutuamente, nem entre elles e o povo de
que derivam, communhão alguma de ideal ou de
sentimento.
Por egual razão não teem caracter nacional,
sendo portanto destituidas de originalidade, e
como taes inaptas para a luta da concorrencia
mercantil, todas as nossas industrias.
A decapitação official da nossa
educação artistica
manifesta-se ainda de mais perto, acotovelando-nos
e contundindo-nos por toda a parte, no aspecto
do povo, na apparencia das casas, na esthetica
das cidades, na apparencia dos predios, na
decoração das praças, das avenidas,
dos cemiterios,
dos jardins publicos, das lojas, das repartições
do estado e das habitações particulares.
Em Lisboa, por exemplo, onde não ha uma
sala de concertos populares, nem vem tocar para
a rua a musica dos regimentos, onde no theatro
de Dona Maria se não representa Gil Vicente
nem Garrett, onde no theatro de S. Carlos se não
canta Marcos Portugal, onde não ha um museu
de arte decorativa, nem um simples mostruario da
nossa producção industrial, nem um museu de
pintura,
[113]
coordenado, catalogado e etiquetado de maneira
que communique ao publico, assim como
em todas as outras capitaes da Europa, a lição
que um museu contém, ha pelo contrario escaparates
de apparatosos armazens, que são para
quem anda pelas ruas o contagioso exemplo da
mais corrompida perversão, do mais provocante e
pomposo relismo a que pode chegar o desvairamento
do gosto. Mobilias em tal maneira degeneradas
que n'ellas desappareceu de todo o material
de construcção. A almofada que em toda a
antiguidade
e em toda a edade média era um accessorio
movel, e só no seculo XVI se principiou a
fixar com pregos ao banco ou á cadeira, invade
boçalmente todo o movel, armado em ripes de
pinho, como uma eça de defunto, embrulhado em
pelucia, que nos esburaca os olhos pela insolente
má creação da côr. E
horripilantes lindices de toucador,
de escriptorio ou de sala, em que tudo parece
apostado em ser fingido, desde a etrusca
ondulação
do contorno até o material empregado,
porque todas as linhas são aleijadas, a prata é
zinco, o marfim é gesso, o charão é de
papel e o
[114]
marmore esculpido é de sabão. E tudo isso se
compra e se leva para casa, para infectar a familia,
para corromper o lar e para escrofulisar moralmente
os meninos, desconjuntando-os de dignidade
domestica, inoculando-os de pelintrice e
de canalhismo de casta para a vida toda.
Ha uma avenida monumental em que, ao longo
dos passeios destinados ao transito do publico,
em vez da ornamentação da flora regional, em
vez dos longos massiços de castanheiros, de laranjeiras,
de palmeiras e de bananeiras, como
em Barcelona e em Sevilha, esverdinham e apodrecem
dois miseros e infectos arroios artificiaes
no fundo de flexuosas ravinas, gretando sinuosamente
o solo, como canos dissimuladamente
abertos em fosquinhas para trambulhões do viandante.
Nos predios a prodigalidade vesanica das janellas
percorre a superficie das fachadas, havendo
frontarias que parecem construidas unicamente
com hombreiras contiguas e sobrepostas; e, ao
passo que em cidades amoraveis e artisticas se
criam premios e se abrem concursos de janellas
[115]
floridas, em Lisboa é prohibido ornamentar de flores
o frontespicio das casas.
Os lindos
empedrados e
embrechados de
tradição
portugueza caem em desuso, substituidos por cimentos
incompativeis com a acção do nosso clima.
O tão commodo, tão modico e tão
gracioso
typo da nossa antiga casa de campo é substituido
nas construcções modernas pelas fórmas
de um
exotismo composito, as mais delambidas, mais
pretenciosas e mais chinfrins, hybrida confusão
allucinada do châlet suisso, do cottage inglez, da
fortaleza normanda, do minarete tartaro e da mesquita
moira,―nodoa e vexame da paizagem portugueza
nas redondezas de Lisboa. Em presença
de um tão inverosimil scenario de magica, de operetta
ou de revista do anno, ninguem, desajudado
de outras indicações, anedocticas e
chorographicas,
será capaz de adivinhar em que parte do mundo e
entre que casta de gente se está passando a peça.
Tal é a delirante epidemia de que estão
combalidos
os constructores contemporaneos, que, para
ter um indicio nacional da nossa tradição, entre
as
casas de campo ou de praia construidas em torno
[116]
de Lisboa nos ultimos vinte annos, temos de ir a
Cascaes vêr o typo, unico, da habitação
dos condes
de Arnozo, tão saudosamente semelhante á
casa de nossos avós, com o seu pequeno eirado
sobre uma arcaria de meio ponto, a sua porta de
alpendre n'um patamar de escada exterior, ao lado
do retabulo em azulejo do santo padroeiro da familia,
as janellas de peitos guarnecidas de rotulas
entre cachorros de pedra, destinados ás varas do
estendal, e servindo de misula aos vasos de craveiros
e de mangericos, em frente do poço de roldana,
no mais doce e tranquillo sorriso d'outr'ora.
Nos mesmos letreiros das esquinas de ruas encontram-se
denominações que esbofeteiam o pundonor
patriotico, a cultura historica e a dignidade
esthetica dos habitantes.
No Bairro Alto, onde a nomenclatura das ruas
tão sympathicamente suggeria a lembrança bucolica
da antiga fazenda suburbana, em que os jesuitas
de S. Roque delinearam a nova cidade, como
a rua da
Vinha, a do
Moinho de Vento, a do
Poço,
a do
Carvalho, a da
Rosa, a da
Atalaia, ou os nomes
dos officios que ahi primitivamente se arruaram,
[117]
como os
Calafates e as
Gaveas, apaga-se,
como n'uma rasura de conta falsificada, esse lindo
e piedoso vestigio da tradição lisboeta, para dar
ás
ruas nomes novos e incaracteristicos, de sujeitos
que n'ellas moram ou se diz que por lá passaram.
E com egual afouteza se dissolvem, n'um borrão
de brocha, sagrados disticos, ainda mais estreitamente
vinculados á historia do povo e á historia
da cidade, como o da Rainha Santa Isabel, como
o dos Martyres de Marrocos.
Os trages populares, alguns tão pittorescos, tão
suggestivos e tão bellos, como os das mulheres da
Murtosa, da Maia, de Santa Martha e de Portuzello,
como o dos boieiros do Ribatejo, dos pescadores
de Ilhavo e da Povoa, e dos montanhezes
do Alemtejo e do Algarve, degeneram e abastardam-se
ridiculamente, porque não ha entre a gente
culta quem preze esse trage, quem o honre e quem
o entenda.
Egualmente se desdenham e repudiam, por espirito
de inconcebivel extrangeirismo, os productos
primorosos de algumas das nossas industrias
populares.
[118]
Nenhum outro povo matiza com mais harmonia
de côr e mais graça de risco esses tecidos
dos teares ou dos bastidores caseiros, combinados
com estopa, com linho, com lã ou com algodão,
de que se fazem os panos liteiros, as sirguilhas,
as saias e os aventaes das mulheres de
Vianna, e bem assim as colxas de linho bordadas
a frouxo na Beira, e os tapetes chamados de Arrayolos.
Nenhum outro povo sabe tornear na
roda do oleiro com mais esbelteza e mais puro
atticismo o pote ou a bilha de barro, a pucara, o
gomil e o pichel, de Coimbra, do Prado, de Mafra,
de Redondo, de Loulé.
Se ninguem mais artisticamente do que o portuguez
sabe vestir a mulher, arrear o cavallo, engatar
a mula, e moldar a vasilha, ninguem, tão
pouco, melhor do que elle emalha a rede e enastra
o cesto.
Dizem inglezes que metade da sua arte contemporanea
se deve á iniciativa e á propaganda do
grande critico nacional John Ruskin, que Tolstoï
considera um dos maiores homens do seculo, e a
quem Carlyle chamava o
ethereal
Ruskin. Este
[119]
glorioso campeão da esthetica e da arte em todas
as suas mais complexas e mais variadas
manifestações
não pode deixar de ser lembrado por todos
os que se interessam em taes assumptos. Os
seus numerosos livros sobre historia da arte, sobre
a architectura, sobre a pintura, sobre as artes
decorativas e as artes industriaes, os seus profundos
estudos de
Turner e os antigos e dos
Pintores
modernos, a sua triumphante campanha em favor
dos monumentos historicos, das industrias ruraes,
dos preraphaelitas, das paizagens inglezas, são
um verdadeiro monumento litterario, e a bibliographia
que se lhe refere constitue toda uma litteratura,
famosa na Inglaterra sob o nome consagrado
de
ruskineana. Grande homem de
acção,
gloria dos da sua raça, tomando por divisa
To day,
Ruskin não se emparedou, como a maioria dos
criticos, na torre eburnea dos extases poeticos e
das contemplações expeculativas. Tendo consumido
rapidamente mil contos de réis da legitima
paterna em subvenções das mais generosas empresas
sociaes, em dadivas aos museus, em soccorro
dos pobres, em fundações de escolas e de
[120]
officinas, reconstituindo pela venda dos seus livros,
(a trinta contos a edição) um rendimento de
riquissimo proprietario, elle fez-se gratuitamente
professor de desenho, industrial e operario. Organisou
a casa editora das suas proprias obras, a
Ruskin House, fundou a
Saint-George's Guild, em
Londres, a Sociedade Protectora dos Monumentos
Architectonicos, e as sociedades de leitura de Manchester,
de Glascow e de Liverpool; ensinou a
Inglaterra a comprehender a obra de Turner; fundou
o culto dos primitivos, introduzindo na
National
Gallery os preciosos quadros de Benozzo
Gozzoli, de Perugino, de Botticelli, de todos os
grandes predecessores de Raphael; e deu á arte
todo um novo ideal e uma religião nova, creando
uma pleiade brilhantissima de proselytos, de collaboradores
e de discipulos, entre os quaes figuram
Madox Brown, Rosseti, Collingwood, Millais,
Morris, Thomaz Dean, Woodward, Munro, Hunt,
Burne Jones, Hook e Brett, e Giacomo Boni, o
actual conservador dos monumentos nacionaes da
Italia. Foi elle emfim que deu a mais alta expressão
á auctoridade esthetica em nossos tempos, impedindo,
[121]
em nome da arte, que um traçado de caminho
de ferro deturpasse a belleza de uma collina
na paizagem ingleza, e levando uma commissão
da Camara dos Lords a consultar uma commissão
de artistas sobre se a passagem de uma
linha ferrea não affectaria ruinosamente a parte
de riqueza publica representada pela tranquilla e
doce poesia de certo valle.
É porém com um intuito especial,―a proposito
das nossas tão resistentes industrias tradicionaes
e domesticas,―que eu invoco o nome
glorioso de Ruskin.
O trabalho rural da fiação á
mão e da tecelagem
no estreito e primitivo tear caseiro achava-se
totalmente extincto na tradição ingleza. Ruskin,
considerando os poderosos elementos de economia,
de moralidade, de satisfação, de
educação
esthetica e de intima poesia, destruidos pela suppressão
d'essa antiga actividade artistica da familia
no campo inglez, dedicou-se com um esforço
portentoso a fazer reviver em Langdale e em Keswick
a extincta industria caseira dos panos de linho
e dos panos de lã em pequenas manufacturas
[122]
domesticas, tendo por unico auxiliar da força individual
uma vela de moinho nos cabeços das
collinas ou a corrente da agua á beira dos riachos.
Elle mesmo dá o exemplo da nova
organisação
do trabalho na familia, construindo o seu
famoso moinho de Laxey. Recompõe-se uma antiga
roda de fiar com as peças desarticuladas e
esquecidas de um d'esses abandonados apparelhos
encontrados em casa de uma velha tecedeira.
É reconstruido um primitivo tear sobre o modelo
florentino e medieval de um quadro de Giotto.
Ruskin envolve esse novo movimento retrogrado
do trabalho na propaganda mais activa e mais
eloquente. A sua palavra calorosamente apaixonada,
colorida e mordente, encontra em todo o
Reino Unido um ecco extraordinario. As teias do
novo linho caseiro, um tanto rugoso, um tanto irregular,
cegado no campo, espadelado, assedado,
fiado, córado e tecido pela mesma mão de mulher,
á porta ou á janella de uma cabana, ao ar
dos campos, ao ramalhar das faias, ao canto das
cotovias, denotando nos accidentes da factura,
como n'uma obra d'arte, a caracteristica individualidade
[123]
do artifice, substituida á banal
perfeição
estupida e antipathica do apparelho mechanico,
desbanca rapidamente a obra da fiação a
vapor, cae em moda entre as pessoas de gosto
aperfeiçoado, recebe a alta protecção
da princeza
de Galles, torna-se de rigor em todos os enxovaes
elegantes, e faz-se pagar mui remuneradoramente
por preços consideravelmente superiores ao dos
productos da grande industria mechanica.
Exito egual ao dos panos de linho na industria
caseira dos lanificios na ilha de Man. É conhecida
não só em toda a Inglaterra mas em toda a Europa
a fama d'esses resistentes tecidos ruraes fabricados
á mão, de desenhos combinados na urdidura
e na trama com as côres naturaes da lã,
sem preparo algum chimico ou mechanico, de tintura
ou de acabamento; e a mais cara de todas as
fazendas de luxo para traje de trabalho, de caça,
de viagem, de equitação, é o famoso
homespun ou
Laxey homespun, do nome da
localidade em que
se estabeleceu o primeiro moinho de Ruskin. É
a esta evolução das pequenas industrias ruraes,
hombreando em valor remunerativo com as grandes
[124]
industrias, e não a destructiva
absorpção do
trabalho da familia pelo trabalho das grandes empresas
fabris que eu chamo
transformação de industrias
caseiras em industrias de concorrencia,―formula
que geralmente se toma em sentido diverso
d'aquelle que eu lhe ligo.
Em Portugal é certo que definham de dia para
dia, e que successivamente se vão extinguindo as
nossas velhas industrias ruraes. Esmorece calamitosamente,
por culpa da administração economica
dos nossos governos, a industria delicadissima
das obras de filigrana de ouro e de prata,
ainda em nossos dias servida por numerosas familias
ruraes dos districtos do Porto e de Braga.
Morreu em Bragança a industria da sericultura
e a da fabricação do veludo. Acabou em
Guimarães,
entre outras industrias interessantissimas, a
da manufactura caseira das sedas e dos brocados.
No Algarve talvez que já hoje se não
faça um
unico trabalho de pita. Tem diminuido consideravelmente
o numero dos teares caseiros na Covilhã,
na serra de Monchique, na serra da Estrella.
Nas margens do Lima, porém, entre Vianna
[125]
do Castello e Ponte de Lima, ha ainda algumas
das mulheres mais lindas e das mais bem educadas
de todas as portuguezas, que fiam e tecem
em suas casas o linho, a lã, o algodão, e se
vestem
completamente, da maneira mais elegante,
com os tecidos mais consistentes e mais bellos,
de sua fabricação exclusiva em todas as phases
por que passa a materia prima, desde que é cegada
no campo ou tosquiada no carneiro até se
converter em vestido. Á feira semanal de Vianna
as raparigas d'essa região trazem em lindas canastras,
além dos ovos e dos frangos que criam, além
da manteiga que fabricam, as teias de pano de linho,
os cortes de saias de lã e de algodão, as
peças
de sirguilha, que tecem, e as rendas que fabricam
a bilros ou á agulha. As de Villa Nova de
Ourem fazem ainda fitas excellentes; e no mercado
de Thomar vende-se em graciosos novellos
da fórma de casulos a melhor linha, branca ou
preta, que se pode comprar em Portugal. Conserva-se
ainda a antiga tradição das
mantas do Alemtejo,
citadas já por Gil Vicente na
Farça dos almocreves,
a dos liteiros e mantas de retalhos, a dos
[126]
lindos alforges da Extremadura, do Alemtejo e do
Algarve, de Minde, d'Alte e de Redondo, e a
d'esses famosos tecidos de lã, que são o
homespun
portuguez, e que em sua variedade se denominam
bureis, estamenhas, briches, saragoças, jardos,
sorrubecos.
Meditemos na maravilhosa obra operada por
Ruskin n'um sentido esthetico, que á primeira
vista se figura retrogrado, mas que encerra talvez
em germen o destino futuro, preciosamente
moralisante de todas as industrias, desde que os
aperfeiçoamentos da electricidade desloquem o
eixo do trabalho fabril, levando a casa de cada
artifice por meio de um tenue fio de arame o
quinhão de força que tem para distribuir por
cada operario do seculo que vem o immenso e
incalculavel esforço propulsôr do sopro dos
ventos,
do fluxo e refluxo das marés, da corrente dos
rios, dos cyclones das Pampas ou das cataractas
do Niagara. E em presença da revolução
das industrias
caseiras da Inglaterra, onde todo o vestigio
de tradição desapparecera, ponderemos o que
se pode fazer em Portugal, onde a tradição
sobrevive
[127]
com uma energia prodigiosa a todos os desdens
e a todas as oppressões que a esmagam!
É notoria desde o seculo XVI a aptidão artistica,
que distingue o nosso marinheiro em todas as pequenas
industrias de bordo, nos mais delicados,
pacientes e engenhosos trabalhos tendo por base
o cabo ou o fio de linho torcido ou entrançado.
Ninguem como elle manusêa os ferros e as
amarrações,
o poleame e o talhame, o cabo, a adriça ou
o pano. Ninguem como elle confecciona o coxim,
a gaxeta, o mixelo, o unhão, a boça, a linga, o
estropo,
o repuxo, o massete ou a agulha. E não o ha
mais dextro em lançar a volta, em enastrar a pinha
e em dar o nó de escota, de fateixa ou de botija,
o nó direito e o nó torto, o de cogula, o de
borla de pescador, ou o de espia. Em toda a nossa
costa, desde o Minho até o Guadiana, a enorme
variedade de fórmas nas embarcações da
pesca
maritima, da pesca fluvial e da pesca lacustre,
basta para evidenciar a persistencia da tradição
no grande genio maritimo de tão pequeno
povo.
Os que ainda vão á pesca do bacalhau,
á Terra
[128]
Nova, equipam de uma maneira especial a escuna
ou o patacho, preferindo porém o typo latino do
hiate e do lugre. Os que vão á cavalla,
á pescada
e ao sarrajão, no mar de Larache, embarcam
nos cahiques de Olhão, semelhantes aos de
toda a costa algarvia e aos de Lisboa e Setubal, de
prôa redonda, apparelhando com dois bastardos.
Á pesca do alto vae a lancha de Caminha, construida
no portinho de Gontinhães; a lancha póveira,
de bocca aberta, apparelhando com um só
mastro e a verga munida de uma grande vela latina;
o
barco da pescada, de Buarcos, de
borda alta
e duas pequenas toldas, apparelhando com dois
mastros; o catraio da Nazareth; o
barco da
sacada,
de Peninhe, de convez corrido com quatro escotilhas
e dois mastros, com as vergas preparando
em cruz; a
rasca da Ericeira, a da
Figueira da Foz
e a da Vieira; as canôas de Belem, de Cezimbra,
de Setubal e do Algarve, chamadas em Lisboa
enviadas
ou
canôas da picada, e no
Algarve
andainas.
Na pesca maritima costeira empregam-se
embarcações
numerosas e variadissimas. Na arte de
galeão agrupam-se: o
galeão, coberto, de
prôa direita
[129]
e arrufada, apparelhando com o latino triangular,
que amura ao bico de prôa e caça á
pôpa,
em mastro inclinado para vante; o
galeonete; o
buque, curvo na roda de
prôa e sem coberta; a
canôa do galeão, e o
acostado, que se emprega no
transporte do peixe. Na armação fixa do atum e
da sardinha, nas
almadrabilhas, ou
almadravas,
como antigamente lhes chamavamos, do nome
arabe que os hispanhoes conservam, labuta o
calão,
grande lancha, de bocca aberta, armando com
estropo oito ou dez remos por banda, tendo na
prôa arredondada, rematada no alto por duas femeas,
uma saliencia vertical de puas em serra, semelhando
um lombo de peixe, e, pintado de cada
lado, um olho arregalado para o horizonte; a
barca
da testa; a
barca das
portas; a
barca da
gacha, e
o
laúde.
Na costa do Algarve, as almadravas occupam
hoje approximadamente os mesmos logares que
tinham no seculo XVI; e o
calão é, como
alguns
barcos do Douro, de prôa comprida e alta, propria
para atracar a margens escarpadas ou para
varar com facilidade na praia, o typo mais analogo
[130]
ao das embarcações portuguezas de ha trezentos
ou quatrocentos annos.
Nas artes de arrastar para terra
figuram as
xavegas
do Algarve, os
saveiros e as
meias-luas, de
Espinho, Furadouro, S. Jacintho, Costa Nova,
Mira, Tocha, Buarcos, Lagos, e outros logares,
desde o sul do Douro até a Vieira, reapparecendo,
mais abaixo, na costa de Caparica e da Galé, e na
praia de Sines.
Nas redes de alar a
reboque trabalham
as
muletas e os
bateis do Seixal.
O sr. Arthur Baldaque da Silva, no seu precioso
livro
Estado actual das pescas em
Portugal, enumera
ainda, entre os diversos typos de embarcações
empregadas em varios systemas de pesca, o
batel de Espozende, o
barco de Vianna do Castello,
a
barquinha do rio Lima, a
bateira da Figueira da
Foz, a
lancha de
Buarcos, a
lanchinha do
Tejo, o
ilhavo da Tarrafa, o
batel de Peniche, o cahique
e a
lancha de Peniche, os
poveiros de Lavos, de
Buarcos, da Nazareth, de Cascaes, de Cezimbra,
de Setubal; o
catraio, a mais
genuina embarcação
portugueza da nossa costa meridional, a
caçadeira
e a
focinheira de porco da Ericeira,
a
maceira da
[131]
costa do Norte, o
cahique de Sines,
o
barco minhoto,
construido em Lanhellas e em Forcadella, o
batel do Cavado, o
barco do Douro, o
esgueirão
da ria de Aveiro, a
lancha de Villa
Franca, a
bateira
do Mondego, a
lanchinha e a
chata
do Tejo,
e outros do continente, sem contar os barcos de
cabotagem, os typos da Africa, dos Açores, da
ilha da Madeira, não descriptos, infelizmente.
São ainda de notar, entre as jangadas mais caracteristicas,
as de Marinhas, para a pesca do
polvo; as de Fão e da Apulia, para a apanha do
sargaço; as de Neiva e as de Sedovem.
Com essa phantastica riqueza de documentos
maritimos, assombro de todos os outros povos, é
verdadeiramente inacreditavel que em Portugal
não haja um museu naval, em que estes documentos
se confrontem e se estudem. Não ha
tal museu.
Em terra é tão variada a
collecção popular das
vasilhas, dos fogareiros e dos cestos caseiros,
como é variada na agua a fórma das
embarcações.
A simples nomenclatura do vasilhame portuguez
dá, só de per si, uma idéa, ainda que
bem incompleta,
[132]
da multiplicidade das suas fórmas, porque
ha typos que variam de região para região, de
dez em dez leguas de perimetro. Esses typos principaes
são a talha, o pote, o cantaro, o caneco, o
tenor, a tarefa, a pucara, o gomil, a escudella, a
tijela, a infusa, a meia, a quarta, a quartinha, a
pinta, a sumicha, a sangradeira, a alquara, a vieira,
o almude, a tamboladeira, o alguidar e o alguidarinho,
o alcadafe, o moringue, o boião, o tarro,
o cantil, a almofia, o alcatruz, o porrão, o
côcho,
o picho, o pichel, a almotolia, a ancoreta, a taleiga,
a galheta, o caldeirão, a caldeira e a caldeirinha,
o tacho, a caçoila, a copa, a bateia, o jarro,
a batega, a pichorra, a botija, a cabaça, a malga,
etc. Alguns d'estes nomes jogam com o antigo systema
de medidas abolidas no seculo XVI, quando
se estabeleceu o systema novo, tendo por base o
quartilho. A vasilha correspondente á velha medida,
condemnada no reinado de D. Sebastião, sobreviveu
porém na tradição e no costume. A
sumicha,
por exemplo, com quatro decilitros de capacidade,
tão maneira, tão graciosa, tão bem
proporcionada
a uma sêde d'agua, é ainda hoje na olaria
[133]
de Coimbra o pucaro consagrado, que no pote
da região, de uma elegancia tão fina e
tão attica,
se encasa no alguidarinho que lhe serve de tampa.
As fórmas populares d'essa vasilharia, umas trazidas
do Peru e do Mexico, como a do moringue
e seus derivados, outras, provenientes de typos
gregos e etruscos, da cratera, da amphora, da ambula,
do askos, do bombylio, etc., são por toda a
parte, em nossos districtos ceramicos, as mais bellas,
as mais engraçadas ou as mais nobres, as mais
irreprehensivelmente puras, parecendo que á roda
mechanica do operario as foi delineando, contornando,
envolvendo sempre, a peça por peça, o
sorriso acariciante de um artista.
De uma humilde panellinha portugueza de barro
preto, de Prado ou de Molellos, deduziram em
França o assucareiro, a leiteira, a cafeteira e o
bule de um serviço de almoço, que ficou
tradicional
na fabricação de Sèvres.
A industria popular da cestaria acompanha na
evolução das fórmas a industria do
oleiro. Todos
os que percorreram as feiras e os mercados do
nosso paiz notariam que cada região tem a sua
[134]
canastra, o seu cabaz e o seu gigo, differentes na
fórma ou no ornato. Ha-os de todas as
configurações,
fundos e chatos, quadrados, octogonos, arredondados,
oblongos, cubicos, cylindricos, espheroidaes,
lembrando algumas vezes a fórma e a
construcção
americana dos samburás, dos tipitis e dos
côfos tupis, feitos de taquara e de cipó, que
introduzimos
talvez no Brazil ou, mais provavelmente,
lá aprendemos a fabricar, deixando o typo do balaio,
com cujo nome se designa ainda na Bahia o
farnel que de ordinario se transporta no cesto portuguez
d'essa configuração, semelhante á de
um
alguidar. Mui frequentemente varia tambem o balaio,
o canistel, a cesta, a condeça, o ceirão e a
ceira, a alcofa e a alcofinha. A materia prima do
cesto é o vime, o junco, a fasquia de castanheiro,
a fasquia de faia e a canna; a da ceira e da alcofa
é o esparto, a engeita, a palha de trigo e de centeio,
a tabúa, a juta e a pita. Em algumas regiões,
como nas Caldas e Vizeu, os cestos são obras primas
incomparaveis de acabamento e de graciosidade.
A canastrinha burriqueira das Caldas, reduzida
ao miniaturismo de dois centimetros, é um
[135]
simples prodigio de fabricação minudente e
delicada.
No Algarve a alcofa, de filiação arabe,
é
por vezes ornada de apparatosas flores bordadas
a seda ou a lã.
Sem embargo, continuando a affirmar-se que não
temos sentimento artistico, desistimos por indisciplina,
por ignorancia, por desanimo, de transformar
em industrias de concorrencia as nossas industrias
domesticas, e não negociamos com o extrangeiro
nem tecidos de phantasia, tão originaes
como os que possuimos, nem papeis pintados derivados
d'esses tecidos, nem a louça, nem a cestaria,
nem a filigrana, immobilisada em typos decrepitos,
e da qual tão lindos effeitos se tirariam,
applicando-a em ouro a serviços de toucador, a
frascos de cristal, a molduras de retratos, a
encadernações
de devocionarios, etc, etc.
Tanto menosprezamos os productos quanto
desconhecemos as fontes da nossa civilisação
artistica.
A arte que menos estudamos é a arte hispanhola,
á qual todavia indissoluvelmente nos
prendem os mais estreitos vinculos de temperamento,
[136]
de tradição e de ideal. Juntamente com os
hispanhoes recebemos dos arabes as primeiras influencias
que em toda a producção artistica da Peninsula
imprimiram a feição differencial mais
caracteristica
e mais indelevel. Aos califados, que
cobriram de mesquitas Cordova, Sevilha, Granada,
Santarem, Lisboa e Coimbra, devemos o
toque de orientalismo peculiar das formas architectonicas
do nosso stylo romanico, ogival e da
renascença. E da mesma procedencia, mosarabe
ou mudejar, são algumas das nossas mais interessantes
industrias, como a da filigrana, a dos azulejos,
a das sedas, a do papel, a da encadernação, a
dos couros lavrados, (a que chamavamos
cordovões
por nos virem de Cordova) a das esteiras, a dos
tapetes, a das obras de esparto, de palma, de pita.
Até o fim do seculo XVI artistas portuguezes, leonezes,
castelhanos, valencianos, aragonezes, catalães,
asturianos, tivemos um ideal commum nas
letras, na architectura, na esculptura, na pintura,
nas artes sumptuarias e nas artes industriaes, celebrando
identicos feitos de guerra, de religião e
de amor, servindo reis do mesmo sangue, heroes
[137]
das mesmas aventuras, santos e santas da mesma
invocação popular.
Das nossas relações com Flandres só
conheciamos―até
ha bem poucos annos―a influencia
flamenga em Portugal, ignorando completamente
a reciproca acção dos portuguezes em Gand, em
Bruges, em Antuerpia. Foi o sr. Joaquim de Vasconcellos
quem, investigando os annaes das confrarias
e o archivo das feitorias de Portugal, consignou
que, em resultado da protecção dada aos
artistas nacionaes por D. João II e por D. Manoel,
de uma só vez chegaram a reunir-se em Paris cincoenta
pensionistas portuguezes. Aos trabalhos do
mesmo investigador se deve acharem-se hoje apurados
varios nomes de pintores de Portugal trabalhando
em Flandres, entre os quaes Edwart
Portugalois, discipulo de Quintino Metsys, proclamado
em 1504 mestre pintor da confraria de
S. Lucas de Antuerpia.
Os trabalhos do sr. Joaquim de Vasconcellos
estão sendo diligentemente continuados pelo sr.
Sousa Viterbo, na Torre do Tombo, e pelo sr. Joaquim
Mauricio Lopes, nosso consul, em Antuerpia.
[138]
Em uma recente publicação do sr. Mauricio
Lopes,
Les portugais à Envers au
XVIème siècle,
demonstra-se
por meio dos mais expressivos documentos
que a colonia portugueza, estabelecida
em Flandres desde que em 1386 o duque de Borgonha
Filippe-o-Ousado concedeu licença para
ahi viverem mercadores de Portugal e dos Algarves
com as suas familias e os seus creados, foi
para a civilisação que os acolheu de uma
importancia
incomparavelmente superior á que jámais
exerceu a colonia flamenga em Portugal.
Os negocios dos portuguezes em Antuerpia, ao
tempo da fundação da primeira feitoria de
Portugal
por D. Manoel, negocios tendo por base,
além das exportações do reino, o
commercio das
especiarias trazidas da India por Lisboa, montavam
annualmente a cerca de cinco mil contos
da nossa moeda actual. O numero das casas
portuguezas em Antuerpia era de cento e doze.
Os mercadores portuguezes representantes d'essas
casas viviam com um fausto verdadeiramente
principesco. Em 1594, por occasião da entrada
triumphal de Filippe II, herdeiro de Carlos V, a
[139]
cavalgada portugueza ficou memoravel. Compunha-se
de vinte senhores e de quarenta creados,
montando todos cavallos peninsulares, ricamente
ajaezados. Os senhores trajavam de brocado e seda
côr de purpura, bordada de ouro e de rubis, com
botões, passamanes e collares de ouro. Todos
os gorros eram orlados de brilhantes. Os creados,
equipados, de couraça e espada, vestiam librés
de seda verde e branca, com as bainhas das
espadas de seda branca.―O que era, segundo o
chronista Cornelius Grapheus,
chose moult riche et
triomphante à voir.
Nas festas da entrada em Antuerpia de Ernesto
d'Austria, governador dos Paizes Baixos, os portuguezes
erigiram um arco triumphal, em que se
viam as figuras da Mauritanea, do Brasil, da Etiopia,
da India, da Persia, do Ganges, do Rio da
Prata, com as estatuas de Filippe I, do principe
Filippe de Hispanha, de D. João II e de D. Manoel.
Em outro arco de triumpho, delineado por
Ludovicus Nonnius e consagrado a Fernando
d'Austria, em 1635, expuzeram os portuguezes diversos
quadros representando, entre outras, as allegorias
[140]
da Victoria, da Clemencia, da Felicidade,
da Religião, e os retratos de D. Affonso Henriques,
D. João I, D. Manoel e D. Filippe II.
Um d'esses portuguezes, o feitor Antonio Cirne,
natural do Porto, nos saraus do Palacio chamado
de Portugal, pretextando que a turba ou a lenha
cheiravam mal, mandava cosinhar as eguarias
com fogo de canela, e queimar canela em todas
as fogueiras das chaminés.
Outro portuguez, Simão Rodrigues d'Evora, era
barão de Rhodes, cavalleiro, senhor de Tewerden,
de Broeckstraate; pela sua enorme fortuna
lhe chamavam o
rei pequeno; possuia
muitos predios
na principal arteria da cidade, e habitava um
d'elles, em que successivamente se hospedaram a
infanta D. Izabel, a rainha Maria de Medicis e o
principe cardeal Fernando d'Austria; fundou, com
o fim caritativo de recolher doze senhoras da nobreza
ou da burguezia reduzidas á indigencia, o
hospicio de Sant'Anna, onde um triptyco de Otto
Venius representava o retrato do fundador com
seus filhos e sua mulher D. Anna Lopes Ximenes
de Aragão.
[141]
O luxo da colonia portugueza em Antuerpia
assumia muitas vezes o mais nobre e mais alto
caracter artistico. A enthusiastica hospitalidade
conferida pelos portuguezes a Alberto Dürer ficou
assignalada pelas grandes festas a que deu origem.
Dürer retribuiu esses favores com presentes
de quadros e de gravuras aos feitores e aos negociantes
de Portugal.
Diogo Duarte, filho de Gaspar Duarte, possuia
uma das primeiras galerias de pintura em Flandres.
Foi recentemente publicado na Hollanda um
catalogo dos seus quadros, entre os quaes havia
obras de Dürer, de Breughel, de Metsys, de Maubeuge,
de Ticiano, de Tintoreto, de Andrea del
Sarto, e um Raphael, que constava haver sido adquirido
do principe D. Manoel de Portugal em
troco de diamantes no valor de 2:200 florins.
Muitos dos nossos compatriotas estabelecidos
em Flandres cultivavam as sciencias e as letras,
contando-se entre elles professores, medicos, escriptores
celebres, como Amato Lusitano, Rodrigo
de Castro, Garcia Lopes, Damião de Goes, etc.
Outro curioso symptoma da nossa desaffeição
[142]
dos estudos da arte nacional é a
estagnação das
velhas idéas preconcebidas na
apreciação dos nossos
monumentos architectonicos. Já me referi ao
ôco basbaquismo
privilegiado
de que é objecto
absorvente o monumento da Batalha. Devo aclarar
um pouco mais, ainda que rapidamente, esse
phenomeno.
Por notavel superstição epidemica, por inercia
de espirito, por servilismo intellectual, por pedantismo
classico, por costume, por commodidade,
por convenção admirativa, ou por qualquer outro
motivo, os criticos portuguezes, que mais teem
governado a opinião, estabeleceram axiomaticamente,
como coisa definitivamente demonstrada
e assente, que o unico puro e genuino exemplar
de stylo gothico existente em Portugal é o da
Batalha. Toda a modificação nas linhas
constructivas
ou nos motivos ornamentaes d'esse typo
passou, por effeito de tal dogma, a qualificar-se
de
decadencia. Capellas imperfeitas,
decadencia!
Claustro dos Jeronymos, decadencia! Egreja de
Christo e de S. João em Thomar, decadencia!
Santa Cruz e S. Marcos, em Coimbra, decadencia!
[143]
Decadencia emfim toda a obra architectonica
da época manoelina.
A termos acceitado tal principio na sua
applicação
pratica, teriamos tido na nossa architectura
ogival do seculo XVI um neo-gothico, fixo e invariavel,
como o neo-greco-romano da renascença,
que é o triumpho consagrado do dogmatismo na
arte, a immobilidade canonica nos systemas de
construir, a cristalisação da rotina, a
sujeição de
toda a imaginação, de todo o poder inventivo a
uma formula invariavel. Teriamos tido de submetter-nos
ao despotismo da Batalha, como tão cegamente,
tão estupidamente, tão inconcebivelmente,
nos temos submettido por tantas centenas
de annos ao despotismo de Vitruvio e das
suas cinco ordens, com os seus correspondentes
aphorismos de proporção e de symetria, seu
pedestal,
sua columna e seu entablamento, repetindo
sempiternamente, sobre os mesmos dados estaticos,
o mesmo denticulo, o mesmo modilhão, a
mesma canelura, o mesmo triglypho, a mesma
gôta, a mesma carranca! Ora precisamente o stylo
manoelino da nossa architectura, com toda a sua
[144]
effusão esculptural, com todo o avassalante symbolismo
dos seus motivos ornamentaes, com toda
a arbitrariedade dos seus processos, com todas as
suas desproporções e todas as suas assymetrias,
não é precisamente senão a
contraposição da liberdade
creativa dos nossos architectos-esculptores
á enfatuação idolatrica, á
pedantesca preceituação
rhetorica, ao esmagador e exhaustivo despotismo
das
cinco ordens, com que o
neo-classicismo
da renascença razoirou todo o talento humano.
O stylo gothico prestava-se como nenhum
outro, pela extrema flexibilidade dos seus principios
fundamentaes, aos desenvolvimentos de pura
arte, com que o esculptor, completando a obra do
engenheiro, e fazendo-se assim architecto, pode
aviventar a pedra de um edificio, convertendo-a
n'um elemento de sympathia e de solidariedade
social, fazendo vibrar na palpitação do seu lavor
evocações de idéas e de sentimentos
proprios dos
homens da sua raça e da sua terra. Os artistas
manoelinos não teriam feito talvez monumentos
correctos, na accessão
indigente em que as academias
empregam esta palavra, mas fizeram monumentos
[145]
expressivos,―o que é
melhor. Porque não
são as academias que pautam as
proporções e os
limites da creação artistica. Tudo o que se pode
formular em preceito cessa de ter valor em arte.
A obra de arte não é um producto de escola:
é
a livre expressão individual de uma alma, convertida
em realidade objectiva, e communicando
aos homens uma vibração nova do sentimento.
A superioridade ou a inferioridade de um artista,
a sua categoria, deduz-se da maior ou menor
quantidade das idéas que a sua obra suggere
e dos sentimentos cuja percussão ella determina.
Nos monumentos architectonicos é pela
sobreposição do ornato esculptural ás
linhas geometricas
da construcção que a arte se exerce. É
principalmente na esculptura que reside a expressão
poetica do monumento.
Em Portugal teem sido acusados os architectos
manoelinos de invadirem pelo vegetabilismo ornamental
todos os perfis da construcção, submettendo
assim as fórmas constructivas á
ornamentação
esculptural. Os grandes criticos da Inglaterra,
que tão consideravel impulso teem dado
[146]
ás idéas estheticas e á moderna
evolução artistica,
entendem porém, ao contrario dos nossos, que a
sciencia de edificar e de dispor linhas é na
construcção
de um monumento um ramo secundario
da arte de esculpir. Esta affirmativa envolve a
consagração da escola manoelina pela critica que
n'este seculo mais minuciosamente e mais profundamente
tem estudado a arte gothica e a arte da
renascença.
Nada todavia mais afflictivo, de peor indicio
para os destinos nacionaes da arte, que o descaso
do publico, pervertido em seu instincto pela carunchosa
doutrina academica, perante esses monumentos
em que sob, o reinado de D. Manoel, os
artistas portuguezes tão vigorosamente accentuaram
a palpitação victoriosa do genio, da
originalidade,
da poesia, da gloria do povo lusitano.
O que se convencionou chamar
decadencia na
ultima evolução do stylo gothico em Portugal
é a
modificação portugueza d'esse stylo, é
a sua nacionalisação,
é a originalidade local, imposta pelos architectos
portuguezes do seculo XVI, a um systema
geral de construcção, commum a toda a Europa.
[147]
Dirão que não é isso precisamente um
novo stylo.
Certamente que não, se unicamente chamarmos
stylo novo em architectura á
constituição complexa
e integral de todo um systema de edificar.
Mas, se tomarmos a palavra stylo em tal accepção,
nenhum stylo é novo em toda a architectura da
edade média e da renascença. Todo o processo
constructivo nos veiu inicialmente da Grecia, de
Roma, de Bysancio, da Syria, do Egypto. Os mesmos
gregos não inventaram a columna, nem os
romanos descobriram a abobada. O que constitue
a originalidade na architectura de qualquer povo
é, como em Portugal, na época manoelina, a
subordinação
de um systema qualquer de geometria
architectural ás condições do clima e
da paizagem,
á natureza dos materiaes empregados, á flora,
á fauna, á concepção
religiosa, á historia, á
poesia, ao temperamento e á psychologia dos artistas,
em cada região. Quanto mais intensa for a
intervenção d'esses factores mais original
será a
obra. Assim, na evolução do gothico na
architectura
portugueza, quanto menos modificado, isto
é, quanto mais
puro
fôr o stylo, mais insignificante
[148]
será o monumento como documentação
artistica,
como expressão social.
É á
decadencia
do gothico da Batalha que nós
devemos o incomparavel claustro dos Jeronymos,
segundo Haupt
o mais bello claustro de todo o
mundo, bem como a fachada da egreja de Christo,
em Thomar, onde a flammejante janella da sala
do capitulo é a obra mais eloquente, mais convicta,
mais poetica, mais enthusiasticamente patriotica,
mais estremecidamente portugueza, que jámais
realisou em nossa raça o talento de esculpir
e de fazer cantar a pedra.
Na ornamentação d'essa janella, em que,
juntamente
com o sentimento mais entranhado das
energias da natureza, rebenta, palpita e brada, em
torno da idéa christã, todo o sagrado pantheismo
das velhas religiões da India, conjugam-se, n'uma
gloriosa harmonia de antiphona a toda a voz, acompanhada
ao orgão, no deslumbramento dos cirios,
no aroma das açucenas, no fumo dos thuribulos
doirado pelo sol, os elementos decorativos do symbolismo
mais poderoso, da suggestão mais profunda.
O artista, em plena posse da sua idéa, em
[149]
completa independencia do seu espirito, em inteira
liberdade dos seus meios de execução, desdiz
todos os votos, abjura todos os principios, renega
todos os canones, infringe todas as regras, e
prescinde de todo o applauso dos mestres, sufocando
nas entranhas da sua propria vaidade a
opinião de si mesmo, unicamente porque tem fé
na verdade que enuncia, porque concentrou toda
a força da sua alma, toda a energia do seu cerebro,
toda a paixão do seu sangue, no amor da obra
em que elle representa o pensamento que o domina.
E em torno d'elle e d'esse objecto amado,
como em torno de todos os que verdadeiramente
amam, tudo mais na terra acabou e desappareceu.
As columnas na janella da sala do capitulo são
polipeiros de coral, dos mais profundos recifes do
Oceano, e troncos d'essa palmeira, cuja sombra
cobriu o berço da civilisação no
littoral mediterraneo,
providencia dos peregrinos nos oasis do
deserto, á qual os arabes da Peninsula dedicavam
uma festa de primavera, tendo por fundamento a
disseminação do polen,―a arvore santa, a arvore
[150]
da Biblia, a arvore de Jesus, cujo ramo symbolico
é um attributo da paixão e da paschoa, da
gloria e do martyrio. Os demais elementos decorativos
são as ondas do mar, taes como ellas se
representam na heraldica; são os troncos seculares
e as raizes profundas dos sobreiros dos nossos
montes, extrema expressão de força na fecundidade
da seiva, que prende o roble, assim como
a tradição e a familia prendem a debil e errante
creatura humana, ao coração da terra em que
nasceu. Guizeiras, como as das mulas de tiro
engatadas á carreta alemtejana, emmolham contorcidas
varas de sobro e de azinho, como nos
feixes de lictor da magistratura romana. Solidas
correntes e possantes cabos de bordo, de que
pendem em discos as boias de cortiça, enlaçam
a decoração, amarrando-a vigorosamente
á
empena por fortes argolões, como se amarraria
uma nau ao caes de um porto. Toda a composição,
partindo das espaduas de um homem, que
parece sustentar-lhe todo o peso, ascende n'uma
trepidação de algas e de folhagens para a cruz de
Christo entre as espheras que tomara por empresa
[151]
o rei venturoso de Portugal triumphante na vastidão
dos mares, em todo o circuito do globo. E o
poema esculptural remata por cima da janella na
rosacea magestosa do templo, formada em circulo
pelas pregas e pelo bolso arfante da vela rizada
de um galeão da India.
O nosso povo porém desaprendeu de ver a
obra artistica do seu passado, e nem sequer levanta
os olhos para os seus mais communicativos
monumentos, que ninguem lhe explica, que
ninguem o ensina a comprehender e a amar.
Resumamos agora a historia do que officialmente
se tem feito no intuito malogrado de proteger
os monumentos publicos e de conservar e
defender os productos d'arte.
Em julho de 1890 o então ministro da
Instrucção
Publica consultou sobre a questão de que se
trata uma commissão de artistas, de archeologos e
de escriptores. Da resposta, até hoje inedita, d'essa
commissão, de que me coube a honra de ser relator,
transcreverei alguns periodos.
O arrolamento da nossa riqueza artistica, que
[152]
se propõe effectuar o ministerio da
instrucção publica
e das bellas artes é―ponderava o relatorio―a
pedra fundamental de toda a construcção destinada
a dar á arte portugueza o logar que lhe compete
na historia geral da nacionalidade, na orientação
do sentimento collectivo do povo, no conjuncto
dos elementos de impulsão e de progresso
para o desenvolvimento das industrias, no respeito
do paiz, emfim, e no da Europa.
O inventario de que se trata, comprehendendo
não só os edificios monumentaes mas os documentos
archeologicos e os productos artisticos de
toda a especie, seria, primeiro que tudo, a
documentação
preciosa para a historia da arte em
Portugal,―determinação
das suas origens ethnicas
e sociaes, fixação dos seus caracteres
distinctivos
e sua relação com a psychologia do povo, com
os sentimentos, com as aspirações, com as ideias,
com os costumes e com as instituições sociaes.
Esse repositorio tornar-se-ia o espelho em que se
achariam reflectidas, com todas as suas modalidades,
segundo as influencias especiaes de cada época,
de cada phase de cultura, de cada estadio social,
[153]
todas as forças emotivas, todas as aptidões
estheticas da nossa raça. A historia dos seus monumentos
é para cada povo a historia da sua individualidade,
porque não ha monumento artistico
que não traduza, mais ou menos directamente,
a acção intellectual e politica da sociedade que
o
concebeu.
A ideia do inventario projectado não é―para
honra nossa―inteiramente nova. No reinado de
D. João V existia na Bibliotheca Real uma obra
em cinco volumes, datada de 1686 e intitulada
«Theatro do reino de Portugal e dos Algarves
por suas cidades, villas, fortes e fortalezas como
que por scenas repartido.» Mais tarde mandou o
referido soberano ao Padre Frei Luiz de S. José,
monge do Cister e artista peritissimo, que fizesse
os debuxos de todas as povoações do Minho, o
que elle cumpriu no anno de 1726. Por indicação
da Academia Real da Historia, e para o fim
de inventariar e conservar os monumentos nacionaes,
publicou-se o decreto de 20 de agosto de
1721, e fundou-se o primeiro dos nossos museus
archeologicos. Infelizmente os livros a que nos referimos
[154]
não chegaram a ser dados á estampa, e
os originaes foram destruidos pelo terremoto de
1755, juntamente com a Bibliotheca Real, e com
o museu estabelecido nas casas dos duques de
Bragança, ao Thesouro Velho.
As disposições do alvará de 20 de
agosto de
1721 constam do seguinte trecho do mesmo alvará:
«Hei por bem que d'aqui em deante nenhuma
pessôa de qualquer estado, qualidade e
condição que seja, desfaça ou destrua
em todo
nem em parte, qualquer edificio, que mostre ser
d'aquelles tempos (assim designados: Phenices,
Gregos, Persos, Romanos, Godos e Arabios) ainda
que em parte esteja arruinado; e da mesma sorte
as estatuas, marmores e cippos em que estiverem
esculpidas algumas figuras, ou tiverem letreiros
phenices, gregos, etc.; ou laminas, ou chapas de
qualquer metal, que contiverem os ditos letreiros,
ou caracteres; como outrosi medalhas ou moedas,
que mostrarem ser d'aquelles tempos, nem
dos inferiores até o reinado do Senhor Rey D.
Sebastião;
nem encubrão ou ocultem alguma das
sobreditas cousas: e encarrego ás camaras das cidades
[155]
e villas d'este reyno tenham muito particular
cuidado em conservar e guardar todas as antiguidades
sobreditas, e de semelhante qualidade
que houver ao presente, ou ao deante se descobrirem
nos limites do seu districto; e logo que se
achar ou descobrir alguma de novo, darão conta
ao secretario da dita Academia Real para elle a
communicar ao director e censores, e mais academicos;
e o dito director e censores, com a noticia
que se lhes participar, poderão dar a providencia
que lhes parecer necessaria para que melhor se
conserve o monumento assim descoberto. Etc.»
Em 4 de fevereiro de 1802, novo alvará sobre
a mesma materia, assim designado: «Alvará com
força de lei pelo qual Vossa Alteza Real he servido
suscitar o alvará de lei de 20 de agosto de
1721, ordenado em beneficio da Academia Real
da Historia Portugueza para a conservação e
integridade
das estatuas, marmores, cippos, e outras
peças de Antiguidade: mandando que as
funcções
do mesmo Alvará, que até agora pertenciam
ao secretario da dita Real Academia, fiquem da
data do presente em deante pertencendo ao Bibliothecario
[156]
Maior da Bibliotheca Publica; tudo
na forma acima declarada.»
Em janeiro de 1844 o Bibliothecario Mór da
Bibliotheca Nacional de Lisboa José Feliciano de
Castilho, informava o respectivo ministro nos seguintes
termos: «Para o bibliothecario mór passaram
attribuições que competiam á Academia
Real da Historia, mas infelizmente essa lei vigente
tem sido até hoje letra morta, a tal ponto que
até
ignoram as suas disposições os proprios
encarregados
do seu cumprimento, com grave detrimento,
não só d'este magnifico repositorio, que ha
muitos
annos se acha estacionario em aquisições
archeologicas,
mas tambem de todo o reino, onde o bibliothecario
mór deveria sempre ter, por obrigação
do seu cargo, promovido a conservação e
segurança
dos monumentos que não podem ou não
devem transportar-se.»
Em seguido propõe o bibliothecario que se torne
effectiva a responsabilidade dos governadores civis
no cumprimento da lei de 20 de agosto de
1721; que esses funccionarios se correspondam
regularmente com o bibliothecario, etc.
[157]
Ficou porém tão morta a letra d'essa consulta
como a da lei a que ella se refere.
Por decreto de 10 de novembro de 1875 é nomeada
uma commissão para propôr ao governo,
com a reforma do ensino das Bellas Artes e com
o plano de um museu, «as providencias que julgar
mais adquadas á conservação, guarda e
reparação
dos monumentos historicos e dos objectos
archeologicos, de importancia nacional, existentes
no reino.» A commissão alludida responde ao
governo
por meio da memoria redigida pelo marquez
de Sousa Holstein, e assim se desempenha
do encargo que lhe fôra confiado.
A louvavel diligencia empregada a convite do
governo pela Real Associação dos Architectos
Civis
e Archeologos Portuguezes, para o fim de lançar
em 1880 as bases de uma inventariação systematica
dos monumentos nacionaes, não foi, assim
como o zeloso trabalho da commissão de 1875,
seguida de resultados praticos.
Independentemente da preceituação official,
teem sido modernamente do mais importante auxilio
para o conhecimento dos nossos valores artisticos
[158]
a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental,
celebrada em Lisboa em 1882, a exposição
de Coimbra, a exposição de Aveiro, a
exposição
de Guimarães, a recente exposição do
centenario
antonino, e as exposições de ourivesaria e
de ceramica promovidas e effectuadas no Palacio
de Cristal do Porto pela muito benemerita Sociedade
de Instrucção.
De algumas das exposições alludidas ficaram
documentos de alto valor. Imprimiram-se relatorios
de muita importancia, e numerosos productos
expostos foram reproduzidos pelo desenho e pela
photographia. Da valiosa collecção photographica,
para a qual principalmente contribuiram Carlos
Relvas, Pardal, Rochini, Biel & Companhia, bem
como dos catalogos dos museus e das exposições
celebradas, se poderia extrahir desde já um
esboço
de inventario, que não seria difficil aperfeiçoar
e
prehencher, emprehendendo novas exposições e
systematisando completamente as investigações e
os estudos correlativos.
A commissão de 1890, a que acima me referi,
propunha que, sem prejuizo das pesquisas que,
[159]
convém continuar, para recolher ou arrolar os valores
artisticos que ainda se conservam ignorados
em poder de corporações ou de particulares, a
commissão
incumbida do inventario geral e definitivo
desse quanto antes principio aos seus trabalhos,
tomando por materia as peças de que ha conhecimento,
já pelo exame de que foram objecto
nos museus onde existem, ou nas exposições
até
hoje feitas, já pelos catalogos e relatorios que
d'essas exposições existem, já pela
consideravel
collecção de photographias que reproduzem os
objectos expostos.
Emquanto á catalogação e á
conservação dos
objectos pertencentes a particulares ou a
corporações
de caracter civil ou religioso, não conviria
desde já estabelecer principios absolutos. O modo
de proceder dos delegados do governo em tal serviço
seria indicado pelas circumstancias particulares
de cada occorrencia, sendo porém altamente
para desejar que os prelados do reino, conscientes
dos estreitos vinculos que ligam o esplendor das
artes á gloria do catholicismo, conseguissem fazer
penetrar na convicção das auctoridades
eclesiasticas
[160]
das suas circumscripções quanto é
inseparavel
da historia da egreja a historia da arte christã, e
quanto o museu, em paizes tradicionalmente catholicos,
é ainda uma fórma do culto ou um desdobramento
d'elle na ordem civil, além de ser o
permanente attestado da alliança da crença
religiosa
com a immortal aspiração da poesia no
coração
e no espirito da nossa raça.
Para regra definitiva do processo a que se refere
o alvitre que acabo de expor é indispensavel que
seja devidamente estudada e promulgada uma lei,
semelhante á que existe hoje na Italia, em
França,
nos Paizes Escandinavos, na Russia, na Hispanha,
na Grecia, na Turquia, tendo por fim definir claramente
e assegurar, de combinação com a
legislação
canonica, com os principios da concordata
e com a legislação geral da propriedade, os
direitos
especiaes do Estado com relação á
guarda dos
monumentos e á parte que elle tem na posse dos
objectos d'arte, determinando assim o caracter especial
da propriedade artistica.
Uma vez decretada essa lei fundamental, e assignalada
a responsabilidade em que incorrem os
[161]
que a transgridam, deveriam formar-se as commissões
regionaes, dependentes da commissão
central, e incumbidas, em suas localidades, da
guarda e da conservação dos monumentos e dos
objectos d'arte. Estas commissões, á
semelhança
do que foi disposto na lei italiana de 1878, da
qual se inspirou em França, para a
organisação
de eguaes serviços, a Direcção das
Bellas Artes,
seriam compostas de oito vogaes, sendo quatro
da nomeação dos municipios e quatro da
nomeação
do governo, com um architecto inspector adjuncto,
sob a presidencia do governador civil ou
do administrador do concelho.
Em toda a parte, ainda nos mais abandonados
recantos da provincia, ha sempre, onde existe um
monumento, um homem pelo menos que o ama,
que o estuda, que o comprehende. É a
collaboração
preciosa d'esses pobres poetas obscuros,
d'esses modestos archeologos, ignorados da critica
e do publico, que aos organisadores das commissões
locaes compete acolher e utilisar.
O processo de inventariação de cada
peça artistica
constaria de duas partes.
[162]
A primeira seria a reproducção photographica,
ou em gesso, ou pela galvanoplastica,
do objecto inventariado, com registro do respectivo
cliché ou molde.
A segunda, a confecção de um simples verbete,
impresso, correspondendo á photographia por meio
de um numero de ordem, e satisfazendo os seguintes
quesitos: 1.º Descripção summaria do
objecto;
2.º Logar onde elle se encontra; 3.º Nome do
individuo
ou da corporação em cuja posse se acha;
4.º Antecedentes; 5.º
Attribuição; 6.º
Avaliação;
7.º Escala em que houver sido feita a
reproducção.
Este systema, semelhante ao dos museus de
Londres, de Berlim e de Vienna, é o mais simples,
o mais economico, o mais pratico, o mais expedito.
Com applicação ao inventario da arte hispanhola
elle foi proposto, pelo delegado de Portugal,
ao grande jury da ultima exposição
historico-europeia
em Madrid. Uma real ordem o mandou
pôr em execução, tendo-o sanccionado a
approvação
unanime de uma commissão presidida
pelo sr. Canovas del Castillo e composta de criticos
[163]
de uma competencia indiscutivel e de uma
notoriedade europeia.
Com a collecção completa das photographias e
dos verbetes a que alludo, o estado, em Portugal,
sem ter da riqueza artistica da nação um
inventario
tão desenvolvido e tão perfeito como o
que outros paizes possuem, teria no emtanto um
arrolamento explicito, e achar-se-hia habilitado a
ministrar-nos o mais efficaz meio de estudo.
Da collecção integral, subdividida em tantas
series
diversas quantos os differentes criterios de
classificação que se lhe applicassem, se
extrairiam
collecções especiaes, em
edições mais ou menos
modestas, relativas a cada ramo do ensino, geral ou
especial, e destinadas ás escolas de bellas artes,
ás escolas industriaes, aos museus das escolas primarias
e secundarias, ás officinas, aos operarios,
facultando assim, ou gratuitamente ou por infimo
preço, a todas as classes sociaes um pronto meio
de conhecimento da historia geral da arte, da historia
da arte em cada uma das suas mais especiaes
applicações, da evolução
das fórmas e do
desenvolvimento dos stylos, na architectura, na
[164]
pintura, na esculptura, na marcenaria, na serralheria,
na ourivesaria, na ceramica, em todos os
ramos emfim do trabalho artistico e industrial.
Eliminando os numeros que relacionam os verbetes
com as photographias, os alumnos das escolas
d'arte, procurando para cada photographia o
verbete correlativo, e satisfazendo por esse processo
aos mais variados quesitos de classificação,
habituar-se-hiam, por meio dos exercicios mais
simplesmente pedagogicos, a discernir as épocas
e os stylos, retendo todas as diversidades da fórma
pela memoria da vista.
Além do que, com o material reunido para o
inventario dos monumentos architectonicos e das
riquezas artisticas da nação, o estado fundaria
simultaneamente
o mais interessante museu de reproducções.
A Commissão dos Monumentos Nacionaes não
é inteiramente, pelos seus meios de
acção e pelos
seus fins, a commissão a que se refere a consulta
de 1890. Parece-me indispensavel, antes de
tudo, que esta commissão se reconstitua em bases
mais amplas, e que d'ella se desdobre a commissão
[165]
do inventario geral da d'arte, ao qual é
urgentissimo que se proceda.
Na parte em que a commissão tem de responder
pela conservação dos monumentos nacionaes,
é preciso, a meu ver, que ella se complete,
tanto no programma dos seus trabalhos como no
pessoal que tem de pôr em execução esse
programma,
não de um modo como até hoje officioso
e facultativo, mas rigorosamente obrigatorio, sendo-lhe
indispensavel para esse effeito a aggregação
e a collaboração effectiva de dois architectos,
a presidencia do sr. ministro, e a publicação
periodica
de um boletim em que regularmente se
communiquem ao publico os resultados do trabalho
feito.
Conseguidas as condições de consistencia
technica,
de auctoridade e de expediente, que no estado
presente lhe fallecem e a innutilisam, cabe á
commissão arrolar definitivamente, pela photographia
e pela escripta, os monumentos confiados
á sua guarda bem como as obras d'arte que o
paiz possue; nomear as commissões locaes; definir
claramente o que é
conservar, o que é
restaurar,
[166]
e o que é
continuar ou
concluir um monumento;
redigir desenvolvidamente e em suas mais particulares
minudencias (porque n'este ponto tudo
está por definir e por estabelecer) os programmas
especiaes a que tem de satisfazer rigorosamente
todo o projecto de conservação, de restauro
ou de acabamento na obra de cada edificio.
Os cuidados de
conservação
devem ser obrigatorios
e extensivos a todos os monumentos. Para
esse effeito o programma é simples, e a despesa
insignificante, ainda perante os mais modestos recursos.
As occasiões em que cabe
restaurar são
relativamente raras. E nenhum edificio, qualquer
que seja a sua importancia historica ou artistica,
convem
concluir, a não
ser nos casos em que
vantajosamente elle se possa adaptar a algum dos
serviços vigentes da civilisação
contemporanea.
Este mesmo criterio economico se deveria applicar
á opportunidade das
restaurações.
Da inobservancia
d'estes preceitos fundamentaes resultou
o contrasenso de restaurar o edificio dos Jeronymos
sem previamente se accordar no destino que
tem de ter esse edificio, como se podesse ser indifferente,
[167]
no modo de reconstruir uma casa, que
ella tenha de ser uma escola, um museu, um archivo,
um recolhimento, um quartel, um banco ou
uma habitação particular!
[1]
Ao governo de sua magestade, para esse fim
solicitado pelos homens que com tão patriotico
[168]
desinteresse constituem a Commissão dos Monumentos
Nacionaes, compete prefazel-a e fortifical-a
com a regulamentação e auctoridade de que
ella carece, ou dissolvel-a.
Se o Estado não intervem cumpre aos governados
levar a effeito, por um decisivo esforço de
[169]
iniciativa, a obra a que se recusem os que governam.
Está-nos dado o exemplo na actividade e na
abnegação de alguns cidadãos
benemeritos.
O sr. bispo-conde de Coimbra funda na sua
diocese o mais completo e mais interessante museu
de ourivesaria sagrada que existe em Portugal,
[170]
e emprehende e realisa, sob a intelligente
collaboração do sr. Antonio Augusto
Gonçalves, a
restauração da Sé Velha e a de Santa
Cruz, com
uma segurança de criterio, de que não ha exemplo
em obra alguma do mesmo genero modernamente
consumada pelas officinas officiaes.
O sr. bispo de Beja applica um egual fervor ás
obras do convento da Conceição; e na mesma cidade
de Beja por iniciativa da municipalidade, por
concurso patriotico de alguns cidadãos, funda-se o
mais copioso e o mais bem catalogado dos nossos
museus archeologicos.
Em Evora o sr. Francisco Barahona custeia por
si só a dispendiosa reparação do
sumptuoso templo
de S. Francisco, sem a qual teria já desabado
ou desabaria em breve a mais bella egreja portugueza
do tempo D. João II.
Na ultima visita que fiz, em setembro passado,
á Sé de Braga, ahi me foi affirmado que o
respectivo
prelado estava elaborando o projecto da
reconstituição
artistica d'aquelle importante monumento.
Em Cette e em Paço de Sousa, camaras, juntas
[171]
de parochia, simples influencias individuaes invidam
os mais louvaveis e mais instantes esforços
para a conservação dos monumentos gloriosos
a que n'esses logares se alliam os nomes de
Egas Moniz, de Gonçalo Veques e de Estevam da
Gama.
A obra tão desvelada da extincta Sociedade de
Instrucção do Porto e a da Sociedade Martins
Sarmento,
em Guimarães, são verdadeiros monumentos
de erudição, de estudo, de trabalho pratico, de
piedade patriotica.
Para a constituição integral da historia da arte
e da tradição artistica portugueza, quantas
contribuições
dedicadas, quantos esforços individuaes,
desassociados e dispersos, na obra, tão incomprehendida
e tão despremiada, dos srs. Joaquim de
Vasconcellos, Martins Sarmento, Antonio Augusto
Gonçalves, Gabriel Pereira, Sousa Viterbo, Luciano
Cordeiro, Ferreira Caldas, Ribeiro Guimarães,
Alberto Sampaio, Julio de Castilho, Theophilo
Braga, Leite de Vasconcellos, Pinho Leal,
Albano Bellino, Teixeira de Aragão, Vilhena Barbosa,
Conceição Gomes, Filippe Simões,
Manoel
[172]
de Macedo, José Pessanha, Fonseca Benevides,
Valentim, Vieira Natividade, Figueiredo da Guerra,
visconde de Condeixa, Borges de Figueiredo,
Marques Gomes, Rodrigo Vicente de Almeida,
Zephyrino Brandão, Possydonio da Silva, Freitas
Costa, Avelino Guimarães, Freire d'Oliveira; e
quantos outros, tanto mais sympathicos quanto
mais obscuros!
O unico inutil da phalange sou talvez eu, que
em vez de uma accurada monographia, estou
aqui fazendo um indice de assumptos, que só devidamente
trataria se de cada uma d'estas paginas
tirasse um livro. Possam ellas ao menos communicar
a outros corações a sympathia, que filialmente
prende o meu á terra em que nasci, e á
raça
de que procedo!
É pelo culto da arte, invocado n'estas paginas,
que a religião da nacionalidade se exteriorisa e se
exerce.
Desde que nas consciencias se extinguiu a fé,
é por meio da arte que as tradicções
se transmittem,
que os sentimentos se coordenam, que os
affectos se depuram, que as paixões se enobrecem.
[173]
É pela arte, que a exprime, que a poesia do christianismo
sobreviverá aos seus dogmas no enternecimento,
no amor, na saudade dos homens. É
tambem pela arte que em nossa memoria a poesia
da historia sobreleva das instituições, dos
systemas,
das theorias e dos homens, sobre que ella
versa.
A politica, depois da desastrosa fallencia de todas
as modernas theorias liberaes, cessou por toda
a parte de ser um foco de attracção para as
idéas
ou para os sentimentos humanos. As leis continuam
a fazer-se com o destino unico de serem
consecutivamente e invariavelmente decretadas,
infringidas e revogadas, para se substituirem por
leis novas, que por seu turno se decretam, se infringem
e se revogam, como succedeu ás anteriores,
como succederá ás que se seguirem.
No momento presente são unicamente os poetas,
os philosofos e os artistas que governam espiritualmente
o mundo. D'ahi, nos paizes de cultura
mental, dominando todos os phenomenos da
decadencia moderna, uma effusão de sympathia,
de tolerancia, de benevolencia, de perdão, que
[174]
caracterisa bem o nosso tempo, e de que não ha
na historia outro exemplo.
Quando recebemos da Inglaterra a ultima affronta
de chancellaria, a que deu motivo o tratado
de Lourenço Marques, quem na minha susceptibilidade
portugueza mais suavisou esse golpe foi o
critico d'arte John Ruskin, proclamando solemnemente
e categoricamente aos estudantes de Glascow
que os estadistas inglezes (tratava-se então
do sr. Disraëli e do sr. Gladstone) lhe não
mereciam
nem mais respeito nem mais consideração
que duas velhas gaitas de folle.
Ruskin separava assim e distinguia radicalmente
a Inglaterra do
Foreign Office e de
lord Salisbury,
da Inglaterra de
South Kensington,
de
British Museum,
da
National Gallery, de
Ruskin Museum, de
Darwin, de Spencer, de Carlos Dickens, de Turner,
de Burne Jones, para a qual tenderá sempre e
irrevogavelmente
a terna gratidão do nosso espirito.
É unicamente pela arte, inherente á natureza
humana, progressiva e eterna, que hoje em dia os
homens se associam no destino e na solidariedade
da especie.
[175]
É pela arte que o genio de cada raça se
patenteia,
que a autonomia nacional de cada povo se
revela na sua autonomia mental, e se affirma, não
só pela sua especial comprehensão da natureza, da
vida e do universo, mas pelo trabalho collectivo
da communidade, na litteratura, na architectura,
na musica, na pintura, na industria e no commercio.
É pelo culto da arte, e pela educação
artistica
que esse culto comprehende, que a producção
industrial se especialisa, se valorisa pela originalidade
caracteristica do producto, e transforma
pela prosperidade, unicamente determinada pelo
ensino, toda a economia de uma nação, como se
evidenciou nos ultimos tempos em Inglaterra, na
Austria, na Allemanha, por via da simples
reconstituição
dos museus e da multiplicação das
escolas.
Finalmente,―se para cada povo a arte é a
segurança
da tradição, o refugio das consciencias,
o mais puro reflexo da imagem benigna da patria,
a fonte mais caudal de todos os progressos
moraes, economicos e até politicos,―para cada
[176]
homem, na tortura de tantas incertesas moraes
na magoa e na ruina de tantas crenças extinctas,
de tantos ideaes desfeitos no melancholico decurso
da nossa edade, a arte é ainda―como diz
Schopenhauer―
a unica flôr da
vida.
Notas:
[1] O
conspicuo parecer, que, a respeito das obras dos Jeronymos,
foi pelo sr. Luciano Cordeiro apresentado á
Commissão dos
Monumentos Nacionaes, em sessão de 7 de novembro de 1895,
termina,
depois d'outras, pelas conclusões seguintes:
«5.ª O Templo deve ficar destinado,
sómente,
ás grandes celebrações
religiosas do Estado, e a Galilea a jazida dos restos dos
Descobridores e Navegadores portuguezes.
«6.ª Todo o resto do monumental edificio deve ser
destinado
a alojamento e installação do Archivo Nacional,
convindo que
essa installação se ache concluida até
o mez de maio de 1897.»
Não concordo inteiramente com o sr. Luciano Cordeiro em
que se transporte para o edificio annexo á egreja dos
Jeronymos
o archivo da Torre do Tombo, e tão pouco em que se remova
da egreja o exercicio parochial do culto.
Por complexas razões, que não vem para aqui
desenvolver, eu
votaria por que, em vez do archivo da Torre do Tombo se estabelecesse
o museu naval no edificio dos Jeronymos. E emquanto
a egreja, além de que, em minha humilde opinião,
o clero
a saberia sempre guardar muito melhor do que o estado, accresce
ainda que a parochia de Santa Maria de Belem é uma
instituição
historicamente sagrada, indissoluvelmente unida em nosso respeito
á tradição do monumento. Foi o infante
D. Henrique quem
transformou o inhospito areal do Restello na linda freguezia de
Belem, arroteando o solo, para refresco, abrigo e amparo espiritual
dos navegantes, plantando arvores, dispondo hortas e pomares,
abrindo fontes e construindo a primitiva ermida exactamente
no mesmo logar em que se edificou a actual egreja. O pontifice Pio II
confirmou por meio de uma bula a doação do
infante á ordem de
Christo, e instituiu em parochia a primeira egreja de Santa Maria de
Belem, sem outro encargo para a ordem, para os navegantes e para
o publico senão o de se rezar a cada missa, aos sabbados, um
Pater
e uma Ave Maria pela salvação da alma do infante
D. Henrique
e por a d'aquelles de quem era teudo. O rei D.
Manoel, tendo
edificado a sumptuosa egreja e o mosteiro dos Jeronymos, na
volta da armada de Vasco da Gama, depois do descobrimento da
India, colloca a estatua do infante á porta da egreja,
mantem a
parochia, e determina, em cumprimento dos piedosos desejos de
D. Henrique, que a cada missa, ao lavar das mãos, o
sacerdote se
volva para a gente, e diga em alta voz. «Rogae a Deus pela
alma
do infante D. Henrique, primeiro fundador d'esta casa, e por a de
el rei D. Manoel, que a doou á ordem de Christo.»
A data d'esta carta de doação é de 26
de dezembro de 1498.
Seria, a meu ver, uma infidelidade, uma ingratidão, e um
torpe desacato remover a parochia de Santa Maria de Belem
do logar em que seus gloriosos fundadores a estabeleceram, cabendo-nos
pelo contrario o dever de reclamar dos poderes civis
e dos poderes ecclesiasticos que o modesto voto dos fundadores
se cumpra, como é de razão juridica e de
probidade nacional,
e que em cada missa conventual celebrada pelo parocho na
egreja dos Jeronymos, o sacerdote se volte para o povo, ao
lavabo,
e peça um
Pater e uma
Ave Maria pela alma do infante D.
Henrique
e pela de el-rei D. Manoel.
Que se adopte porém ou se não adopte a proposta
do sr. Luciano
Cordeiro, o que technicamente não é de certo
admissivel é
que as obras dos Jeronymos se prosigam e se concluam sem
resolução
tomada ácerca do destino que ha de ter o edificio em que
taes obras se fazem.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Variantes dos nomes próprios foram mantidas de acordo com o
original.